Em recente palestra na Universidade Federal da Bahia, Angela Davis disse: “Nós iremos resistir à islamofobia.”[1] Muitas pessoas podem não ter compreendido a fala da feminista: como alguém que se diz comprometida com as pautas feministas poderia, de algum modo, defender uma religião supostamente machista e tão cerceadora das mulheres?

Acontece que tal desconhecimento, da convergência entre pautas feministas e questões islâmicas, é uma constante entre muçulmanos e não muçulmanos. O desconhecimento das hermenêuticas corânicas possíveis leva a uma exaltação da autoridade patriarcal em detrimento da justiça de gênero. Essa justiça de gênero é justamente a chave de leitura mobilizada pela muçulmana feminista Amina Wadud.

 

Formação acadêmica

 

Nascida Mary Teasley em 25 de setembro de 1952, passou por uma série de dificuldades para terminar seus estudos secundários. Foi durante sua graduação na Universidade da Pensilvânia que se tornou muçulmana, no Dia de Ação de Graças de 1972. Seu doutorado em Estudos Islâmicos na Universidade de Michigan foi sobre as representações femininas no Alcorão, tendo concluído seu Ph.D. em 1988 em pesquisas relacionadas ao tema. De 1989 a 1992, ela lecionou na Universidade Internacional Islâmica em Kuala Lumpur, Malásia. Ainda na Malásia, fundou o grupo “Irmãs no Islã” (Sisters in Islam – SIS)[2], organização pró-direitos das mulheres e com claro posicionamento islâmico. Voltando aos Estados Unidos, foi professora de Estudos Islâmicos na Universidade da Virgínia até sua aposentadoria, em 2008.

Negra e de família pobre, sua leitura corânica inevitavelmente se relacionaria ao combate de outras formas de opressão, como o racismo. A opressão doméstica também seria alvo de sua reflexão, uma vez que o compromisso com valores progressistas deve se dar na esfera privada e na esfera pública. Sua identificação com o Islã e sua eventual conversão[3] perpassou a herança islâmica africana nos Estados Unidos. Assim como no Brasil, haveria uma história descontínua da presença islâmica: o afluxo de muçulmanos em navios negreiros é esquecido em favor da migração árabe. Todavia, as muçulmanas e os muçulmanos que primeiramente aportaram às Américas do Norte e do Sul eram africanas e africanos, negras e negros, em situação de escravidão.

Ressalta-se que seu posicionamento de reinterpretação das fontes islâmicas é mais religioso que secular – apesar do aspecto mais secular ser característico de outros feminismos islâmicos. A busca, nas fontes tradicionais islâmicas, de elementos que possibilitem a emancipação das mulheres muçulmanas é um esforço da autora, mas também de outras muçulmanas. Segundo Wadud, a igualdade, a justiça e a pluralidade estão contidas no Islã, de modo que, em essência, seria uma religião igualitária. O Islã parte da ideia de tawheed (“monoteísmo”): Amina considerará, então, o patriarcado como uma forma de idolatria. Ao estabelecer que homens são superiores às mulheres, o patriarcado combateria a perspectiva de que acima de todas e todos está Allah, o que levaria necessariamente a uma convivência de reciprocidade e não de dominação. Assim, de acordo com seus ensinamentos, o homem não é autoridade maior que Deus, sendo que a autoridade religiosa mantida nas mãos de homens é muito mais a manifestação do patriarcado se apropriando do Islã do que uma estrita observação do texto corânico e da prática do Profeta.

Complementando suas atividades acadêmicas, escreveu as obras Qurʼan and woman: rereading the sacred text from a woman’s perspective (1999) e Inside the gender Jihad: women’s reform in Islam (2006), além de ter prestado consultoria para o documentário Muhammad: Legacy of a Prophet (2002). Todavia, tornou-se bastante conhecida por muçulmanos no mundo ao problematizar uma das principais noções na comunidade muçulmana: a de autoridade.

 

Da autoridade à justiça

 

Partindo de uma priorização do texto corânico frente ao corpus literário das narrativas (aos ahadith – pl. de hadith), sua leitura do texto sagrado contém propostas libertárias para a contemporaneidade, problematizando a noção de autoridade religiosa. Wadud mobiliza tanto a análise textual quanto o criticismo histórico, demonstrando conhecimento singular das tradições islâmicas. Seu entendimento é de que a mensagem corânica contém simultaneamente as características transcendentais, dirigindo-se aos muçulmanos em diferentes contextos sociais, temporais, locais, raciais e de gênero, e temporais, dirigidas para aquela comunidade árabe específica.

A fonte crucial para o entendimento da vontade divina seria, além de leitura do Alcorão, o contexto no qual a pessoa interpreta a revelação, sua própria realidade e experiência. As demais fontes islâmicas, como os ahadith e a Sunnah (narrativas biográficas da vida do Profeta Muhammad), devem, então, ser consultadas naquilo que clarificam ou confirmam a mensagem islâmica de justiça e compaixão, nunca em desacordo com esses princípios. Não haveria, portanto, uma hierarquização de superioridade do homem diante da mulher, mas a proposta do convívio diverso, plural e não hierárquico.

A própria shariah (compreendida enquanto “lei islâmica”) é alvo de críticas: elaborada por seres humanos, acabaria por confundir a Mensagem de Deus com a interpretação dos muçulmanos. Os principais elaboradores da shariah são os homens, tendo exercido esse papel muito mais pelo complexo de violências que exercem do que pela exclusividade de leituras possíveis do texto sagrado. Assim, uma abordagem da shariah haveria de considerar a leitura realizada pelas mulheres muçulmanas para que estivesse em consonância com a mensagem de justiça de gênero proposta no Alcorão.

Suas reinterpretações das fontes culminaram em um ato prático de questionamento da autoridade patriarcal na comunidade muçulmana. Amina conduziu uma oração em congregação no ano de 2005, na Synod House da Cathedral of St. John the Divine, em Nova Iorque.[4] Em desacordo com as interpretações tradicionais, somente homens poderiam liderar a oração, o que gerou protestos e grande repercussão na comunidade.[5] A congregação de fieis também não seguiu a divisão tradicional de homens em frente e mulheres atrás: foi uma oração mista sem a tradicional separação entre homens e mulheres. Além disso, quem realizou o adhan (“chamado para a oração”) foi outra mulher, Suheyla el-Attar. Tanto a posição de quem lidera quanto quem faz o chamado são de ocupação masculina, de maneira que não poderiam ser desempenhadas por mulheres. Amina Wadud então propõe, na prática, a apreensão de que muçulmanas e muçulmanos são iguais, seja na vida pública ou privada, em uma defesa da justiça de gênero tanto nas relações cotidianas quanto nas ritualísticas da fé.

Amina Wadud vai contra as tradições religiosas e conduz uma oração em congregação no ano de 2005, na Synod House da Cathedral of St. John the Divine, em Nova Iorque. 

 

Feminismo islâmico?

 

De acordo com Wadud, seu próprio posicionamento é pró-fé e pró-feminista – e não exatamente feminista. Seu trabalho pode ser adjetivado enquanto feminista, mas seu posicionamento antagônico se faz pela crítica à presença dominante de mulheres brancas e à predominância de uma base secularista para os movimentos feministas. O feminismo de Wadud estabeleceria, então, maiores relações com o feminismo descolonial. Em síntese, Wadud critica posicionamentos feministas sem deixar de se identificar com eles. Uma de suas principais convergências seria a defesa de uma “leitura feminista” do Alcorão: ao contrário de ser um texto essencialmente machista, a leitura patriarcal do Alcorão favoreceria formas de dominação que o próprio Alcorão combateria em termos de estabelecimento de justiça, incluindo a de gênero.

As estruturas colonialistas e orientalistas, o patriarcado cristão e o racismo epistêmico são todas manifestações de uma sociedade em específico: o mesmo se daria com o feminismo ocidentalizado. Para além do feminismo branco e laico, o feminismo islâmico traz questões relativas ao pensamento colonizado que não podem ser desconsideradas das demandas feministas, sob o risco de ser um feminismo para algumas, não para todas. Muçulmanas, inclusive.

Sobre o autor: Felipe Freitas de Souza é pedagogo, mestre em Educação Tecnológica e muçulmano desde 2010. Participa do Núcleo Acadêmico Islâmico da Mesquita de Santo Amaro e do Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes da USP de Ribeirão Preto.  *Revisão por Ákilla Lonardelli. 

[1] No original, We will resist islamophobia. A partir de 1:40:25.

[2] Sisters in Islam.

[3] Os muçulmanos se referem ao processo de conversão como reversão, uma vez que a pessoa voltaria ao estado original, islâmico, de sua criação. A reversão seria uma reorientação ontológica em vida.

[4] BBC. Woman leads US Muslims to prayer.

[5] Uma das críticas a essa condução de oração por Amina Wadud foi realizada por Houria Bouteldja, que questiona se essa oração não teve como função mais cumprir as demandas de uma sociedade branca e não muçulmana do que efetivamente dar vazão a uma demanda das mulheres muçulmanas. Todavia, a problematização do status quo machista não pode ser nublada.

Referências:

LIMA, Cila. Feminismo islâmico: mediações discursivas e limites práticos (2017).

WADUD, Amina. Islam Beyond Patriarchy Through Gender Inclusive Qur’anic Analysis.

RAHEMTULLA, Shadaab. Qur’an of the Oppressed: Liberation Theology and Gender Justice in Islam (2017).