Como muitas de minhas companheiras feministas, parece que vivo em dois mundos: um é auto-organizado, um mundo de mulheres unidas para construir liberdade; o outro, o mundo “real”, o mundo dos homens, de onde não se pode escapar. Uma barreira invisível e seletivamente permeável os separa. A lógica da opressão, construtora de grandes muros e barreiras, decide o que passa de um lado ao outro.

Sendo essa divisão fundada na desigualdade, a troca entre meus dois mundos é obviamente desigual. De um lado, a forma de pensar o mundo do pretensioso sujeito universal – o homem, branco, heterossexual, elite política, jurídica e econômica – continuamente invade nossas ilhas de resistência, fazendo com que tenhamos que estar sempre atentas às nossas práticas e palavras, para não reproduzir o que buscamos desmontar.

Do outro, a passagem de nossa ilha para o mundo “real” não é tão livre. Enquanto feministas, quando falamos do que é o machismo da perspectiva de quem enxerga mais do que um homem confortável em seu mundinho, nossas reivindicações são reduzidas à menor importância – nossas elaborações, tão bem pensadas, tão ponderadas, analisadas à exaustão, chegam aos ouvidos do lado de lá como meros resmungos.

 

Mundo de mulheres, mundo de homens

 

Há pouco voltei de uma semana na ilha de Florianópolis, onde aconteceu o 11° Seminário Internacional Fazendo Gênero, encontro acadêmico referência no Brasil e na América Latina, realizado desde 1994, e o 13° Mundo de Mulheres, encontro mundial de mulheres acadêmicas e militantes, sediado pela primeira vez na América do Sul. Uma semana entre mulheres, discutindo política, movimentos sociais, filosofia, arte, história, educação, saúde, economia, enfim, tudo.

É difícil reduzir em palavras a potência desses encontros. É limitada a possibilidade de explicar racionalmente o que significa não sentir a opressão do corpo, da mente, dos sentimentos, da sexualidade. A sensação de pertencimento ao mundo, o acalento de estar em espaços seguros, a libertação dos mecanismos de autovigília e autocontrole, a autoestima saudável. A felicidade de não sentir meu corpo e meu desejo como limitações.

Ao retornar, dias depois, desintoxicada daquele anestésico chamado resignação, que me permite viver sem entrar em choque a todo tempo com cada opressão que cruza meu caminho, tive a nítida sensação do que é essa violência que marca a travessia de um mundo ao outro.

Acontece que, apesar da produção de conhecimento atravessado pela perspectiva de gênero, sexualidade e raça ter ocupado todos os campos de pensamento, quando em nossa fala ponderamos esses recortes, ainda parece que estamos falando só e somente sobre a condição das(os) oprimidas(os).

Quer dizer, enquanto o sujeito universal – o homem e branco e cisgênero e heterossexual e bem-nascido – parece falar pelo mundo todo, quando na verdade fala por um grupo bem seleto de seres humanos, qualquer conhecimento que fale daqueles que não são o sujeito universal – quer dizer, qualquer que não carregue todos esses predicados – é um conhecimento marginal, minoritário. A inversão que essa barreira cria é absurda.

Aliás, inversão não, opressão.

Enquanto mulher, toda a minha existência no mundo real é marcada pelo fato de eu ser mulher. Os mecanismos que me fazem assumir esse papel social me interpelam em todos os âmbitos da minha vida. Comprimir essa realidade a uma condição de marginalidade, como se fosse possível discutir “apenas” gênero, como um saber marginal e desconectado das demais condições da sociedade, é comprimir, oprimir o todo de alguém e uma pequena porção previamente reservada pelo opressor.

A violência de atravessar de um mundo ao outro é a violência da diminuição, da segregação, do impedimento de atingir o todo, da redução de toda uma realidade e uma perspectiva diminuída, do todo de uma narrativa a uma mera nota de rodapé do mundo masculino. A travessia mediada pela opressão significa exatamente isso: opressão, comprimir para fazer caber nas bordas o que não tem lugar ao centro, significa ser menos, significa ser alvo, significa ter de se proteger, significa não poder desejar. Significa reorientar nossa totalidade para uma luta por estar, por ser. O tempo todo.

De pé no mundo dos homens, sei que obviamente não vivo em um mundo separado. Estamos totalmente ao alcance da opressão. A existência de um mundo paralelo feminista é tão impossível quanto a existência de um sujeito universal. Mas ainda assim, é em nome desse sujeito inexistente que tudo se organiza, enquanto o resto do mundo se comprime nas bordas que lhe sobram, como se dele não fizessem parte.

 

O feminismo marginal

 

Mesmo entre companheiros de luta, que parecem demonstrar nossa mesma preocupação em repensar e transformar nossa sociedade, o feminismo é dificilmente levado a sério enquanto formulador dos alicerces desse novo mundo no qual tanta gente espera nascer. O discurso das mulheres nunca pode ocupar o centro das pautas da esquerda.

Somos sempre parte dos grupos temáticos, dos temas especiais, das discussões sobre gênero (porque só a mulher tem gênero, o homem é neutro), do consciencioso “gostaria que mais mulheres falassem” naquele fim de reunião em que homens disputaram no grito o espaço sonoro. Na melhor das hipóteses, nossos companheiros entendem o feminismo como condição para que a mulher lute. Raramente buscam compreender a opressão como fundamento da sociedade que oprime, e não consequência.

Agindo assim, nossos companheiros agem de mãos dadas com a opressão, silenciando a voz daquelas que, tantas vezes, em suas experiências diárias e históricas, trazem a chave para a saída desse mundo decadente.

Nas últimas semanas, Angela Davis esteve na Bahia, colocando de maneira tão simples o que a esquerda masculina tem se desdobrado para tentar remendar: a intersecção entre opressão de classe e as lutas contra as opressões de gênero e raça. Davis, uma militante que não deve nada teoricamente ao mais bem lido revolucionário branco, afirma pela necessidade de construção não só de novas lideranças, mas de novas formas de liderar, considerando o movimento das mulheres negras o mais importante do Brasil hoje “na busca por liberdade”. Propondo novos caminhos para a militância, Angela Davis fala de um projeto de mundo, não de um projeto para mulheres.

Silvia Federici, que teve seu livro “Calibã e a Bruxa” recentemente traduzido para o português pelas companheiras do Coletivo Sycorax e publicado em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo, reconta a história da acumulação primitiva de capital a partir da caça às bruxas. Afirma que a mulher foi a primeira vítima do capitalismo, expulsa do espaço público por meio de violência, uma forma de privatizar os conhecimentos sobre os ciclos da terra e do corpo. Remonta a história do desenvolvimento capitalista demonstrando como a divisão sexual do trabalho é a fonte da divisão entre público e privado, produtivo e reprodutivo, emoção e razão, indivíduo e coletivo. Colocando no centro do debate que a racionalidade do capitalismo é a racionalidade masculina, que promove cisões binárias e as hierarquiza negativamente, propõe um novo conceito de relações sociais. Federici fala de um projeto de mundo, não de um projeto para mulheres.

Citada com grande entusiasmo pelas companheiras do latino-americanas, do movimento camponês e indígena, Vandana Shiva, PhD em física e ecofeminista indiana, é uma importante pensadora e ativista contra a mercantilização da vida. Luta pela soberania alimentar por meio da garantia de sobrevivência de formas de produção alternativas à lógica desenvolvimentista do capital, sustentadas na Índia pelas comunidades geridas por mulheres. Afirma que elas, encarregadas da manutenção da vida por tanto tempo, são experts em combater a morte trazida pela segregação entre homem e natureza. Propondo um novo conceito de produção de vida, e não de mercadorias, Vandana Shiva fala de um projeto de mundo, não de um projeto para mulheres.

São só alguns exemplos, os que estão aí cruzando nossa linha do tempo por agora. A lista completa das mulheres que estão criticando e refundando os conceitos do antigo mundo masculino é imensa e só cresce. Elas mostram que falar de uma transformação radical do mundo em que todas(os) vivemos significa falar da reunião entre o que o capitalismo dividiu, significa trazer ao centro aqueles que, para que fossem explorados, foram marginalizados.

Destruir a sociedade que nos oprime significa superar os alicerces dessa sociedade, fundados na masculinidade. Significa reaproximar o que foi expulso, junto com seus corpos, seus saberes, suas histórias, seus desejos. Transformar a lógica do privado e do público, do natural e do humano, da produção e da reprodução, do sentimento e da razão, reestabelecendo os equilíbrios desfeitos pela sobreposição violenta de um sobre o outro.

Do lado de cá, muitas já vislumbram que essa construção feita pelo masculino é babilônica e não pode se sustentar por muito mais tempo. Mesmo silenciadas, seguiremos produzindo, seguiremos falando, incomodando, forçando os limites, até não ser possível mais nos ignorar. Quer dizer, longe de mim falar por todas, longe de mim enquadrar a diversidade num tipo de sujeito único à minha imagem e semelhança, mas a resistência segue firme para todo lado que olho.

Fico imaginando que, quando rompermos de vez essa barreira que abafa nossos discursos e nossas práticas, inundaremos o universo desse sujeito mesquinho com tamanha abundância que o homem médio passará a se perguntar: onde será que estavam essas pensadoras, essas ativistas, essas artistas que nunca vimos antes?

As mais pacientes responderão: do outro lado do muro do seu machismo.

 

Tainã Góis. revisado por Clarice Batista Farina 
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