Em março de 2017, me deparei com uma notícia no jornal que me causou espanto: os Membros do Parlamento britânicos haviam votado a favor da descriminalização do aborto na Inglaterra e no País de Gales, por 172 votos a favor contra 142 votos de oposição. Fiquei surpresa, pois sempre achei que o aborto já não era crime por aqui – afinal, está disponível no sistema de saúde público, o National Health Service (NHS) – mas esse episódio me fez abrir os olhos não apenas para a fragilidade das leis que garantem os direitos reprodutivos das mulheres no mundo todo, mas também para a situação absurda que vivem nossas vizinhas na Irlanda do Norte.

O aborto na Inglaterra, Escócia e País de Gales é permitido desde 1967 e pode ser feito tanto pelo sistema público de saúde como em clínicas privadas, até a 24ª semana de gestação. Porém, o procedimento só pode ser realizado depois que a mulher obtiver a autorização de dois médicos. Na teoria, é preciso que os médicos atestem que há risco para a saúde mental ou física da mulher e/ou do feto caso a gravidez siga em frente, mas na prática a “permissão” é concedida sem grandes dificuldades. Porém, como o NHS passa por uma crise financeira que não dá sinais de que vá ser solucionada em breve, as mulheres que têm acesso a clínicas privadas passam por todo esse processo com muito mais tranquilidade.

Pesquisando sobre aborto em um fórum do NHS me deparei com depoimentos desesperados de mulheres que não conseguiam consulta com seus médicos de família. Toda mulher, assim que descobre a gravidez, passa primeiro pelo General Practitioner (ou GP, um médico de família),  para então ser encaminhada para as consultas com parteiras, obstetras, ultrassonografias e afins. Umas contam que enfrentam semanas de espera e agonia para terem os seus procedimentos agendados no hospital. Outras contam que não tem com quem deixar os filhos para irem ao médico ou têm medo de procurar o NHS com medo de serem julgadas quando precisarem voltar ao GP para tratar problemas de saúde futuros.

Apesar das dificuldades do NHS e das limitações do Abortion Act de 1967, ainda assim – talvez por eu ser de um país onde o aborto é inacessível para a maioria das mulheres e moralmente recriminado – eu sempre tive a impressão de que na Inglaterra eu estou mais livre e mais amparada. Todas as minhas amigas que tiveram filhos aqui afirmam que uma das primeiras perguntas do médico ou da enfermeira na primeira consulta é: “você está feliz com a gravidez? Vai prosseguir com a gestação?”. Por isso a minha surpresa com a notícia sobre descriminalização do aborto, 50 anos depois do Abortion Act.

A votação de março de 2017 foi projeto da MP Diana Johnson, do partido Labour, que declarou: “pela primeira vez as mulheres são reconhecidas como autoras de suas próprias vidas”. Apesar de muita gente achar que esse passo foi mais simbólico do que prático, a verdade é que a lei na Grã Bretanha está sim atrasada quando comparada com outros países na Europa. Mulheres com acesso à informação e pílulas para realizar um aborto em casa ainda podem ser presas e processadas, e a formalização da total descriminalização do aborto garante a autonomia dessas mulheres. Segundo a British Pregnancy Advisory Service (Bpas), o número de mulheres comprando pílulas online vem aumentando, e muitas delas sequer sabem que estão cometendo um crime.

Durante uma convenção em junho de 2017, a British Medical Association (BMA) declarou seu apoio à total descriminalização, afirmando que “a decisão é médica, não criminal”, e a maioria dos associados presentes votou a favor de uma proposta para requerer a mudança na lei. Isso significa que a BMA a partir de agora utiliza essa posição em relação ao aborto como uma política e irá fazer lobby com os MPs para que a lei seja alterada o mais rápido possível. Em tempo: apesar de ter passado na primeira leitura, o projeto de lei que prevê a total descriminalização voltou à estaca zero. A segunda leitura foi cancelada quando a Primeira Ministra Theresa May convocou eleições gerais pouco tempo depois. Como a Casa dos Comuns (House of Commons) foi dissolvida para as eleições, essa lei não chegou a ser efetivada a tempo e ainda não há previsão de uma nova leitura com a nova formação da Casa.

 

Um pouco de história

 

Apesar do Abortion Act garantir o acesso ao aborto legal, seguro e gratuito (ainda que com as restrições anteriormente citadas) desde 1967, a discussão acerca do direito ao aborto começou a ganhar força e atenção na mídia na década de 1930. Ainda na década de 20 houveram avanços em relação ao acesso a contraceptivos e uma das mulheres responsáveis por isso foi a cientista Marie Stopes, que hoje dá nome a uma das clínicas de aborto privadas mais conceituadas na Grã Bretanha.

Em 1929 Stella Browne, feminista ativista que participou de diversas campanhas relacionadas ao acesso a contraceptivos e que começou seu ativismo no início do século 20 quando se uniu ao movimento sufragista, fez uma palestra intitulada “O Direito ao Aborto” (The Right to Abortion) no World Sexual Reform Congress em Londres. A partir de então, Browne dedicou-se intensamente à causa, viajando pelo país e mostrando para as mulheres a importância de se ter controle sobre sua sexualidade e direitos reprodutivos.

Em fevereiro de 1936, juntamente com Janet Chance a Alice Jenkins, Browne fundou a Abortion Law Reform Association (ALRA),  que recrutou cerca de 400 membros em três anos. Até 1939 a Associação organizou uma sériede palestras pelo país, atingindo principalmente mulheres da classe trabalhadora, que sabiam que seriam as maiores beneficiadas com a descriminalização do aborto. Porém, com o início da Segunda Guerra Mundial, a campanha perdeu força e só foi retomada quando o conflito chegou ao fim.

Simone Browne morreu em 1955, anos antes do Abortion Act. Em sua certidão de óbito consta uma das maiores ofensas a ela e ao seu legado: no campo “profissão” foi escrito “Spinster: no occupation” (Solteirona: sem profissão).

Um dos casos mais emblemáticos na luta pela descriminalização do aborto na Grã Bretanha aconteceu em 1938, quando a médica e ativista Joan Malleson (que também fazia parte da ALRA) ajudou uma adolescente de 14 anos que havia sido estuprada a fazer um aborto. Malleson indicou a adolescente para o ginecologista Aleck Bourne, que fez o procedimento e consequentemente foi processado e julgado. Joan Malleson testemunhou a seu favor e ele foi absolvido, abrindo um precedente para a compreensão de que o aborto poderia evitar malefícios futuros para a saúde física e mental da mulher.

A ALRA retomou as suas atividades depois do fim da guerra, mas é apenas na década de 1960, graças às diversas mudanças sociais e econômicas, que a discussão acerca da descriminalização do aborto volta a ganhar força – e novas ativistas. Diane Munday, hoje com 86 anos, é uma delas. 

Diane nunca havia parado pra pensar sobre aborto até ficar sabendo da morte da sua costureira depois de se submeter a um aborto ilegal. “Ninguém falava sobre o que tinha acontecido. Só sabíamos que ela estava morta”, contou Diane em entrevista para o jornal The Independent em março de 2017. Ela conta também que havia uma rede “underground” de pessoas que faziam o procedimento, muitas sem nenhuma experiência médica. E, como acontece até hoje em países onde aborto é crime, milhares de mortes eram acobertadas pelas famílias e amigos, que também tinham que lidar com a vergonha da causa da morte.

Apesar do episódio da costureira, Diane passou anos sem pensar sobre o assunto até ela mesma precisar fazer um aborto, no início da década de 60. Com 3 filhos menores de 4 anos, ela simplesmente não queria mais um. Como sua família tinha dinheiro, ela teve uma experiência bastante diferente da costureira: pagou um bom médico que a diagnosticou como doente mental, o que lhe garantiu um procedimento seguro, inclusive com anestesia geral. Diane entendeu seu privilégio e a partir então dedicou sua vida a luta pela descriminalização do aborto (tornou-se membro da ALRA e chegou a ter o cargo de vice presidente).

O envolvimento de Diane e diversas outras ativistas da ALRA resultou no Abortion Act de 1967, que teve o presidente do Royal College of Obstetricians and Gynaecologists, John Peel, como chefe do comitê que aconselhou o governo britânico no desenvolvimento da lei.

Ativismo hoje

 

Diversos coletivos feministas e organizações que lutam pelos direitos das mulheres estão envolvidos em campanhas não apenas de descriminalização do aborto, mas também visando combater o estigma e o envolvimento da igreja.

O coletivo Feminist Fightback, por exemplo, organiza “anti-vigílias”: quando ficam sabendo que grupos religiosos farão procissões saindo da igreja em direção a clínicas de aborto, elas chegam antes na igreja e impedem a saída da procissão.

Outras organizações que merecem destaque na luta pela total descriminalização do aborto no Reino Unido são Abortion Rights e We Trust Women. Ambas tem apoio de diversas associações, instituições que lutam pelos direitos das mulheres, grupos de médicos e partidos políticos. Sempre que há qualquer ameaça contra os direitos já adquiridos em relação ao aborto – como, por exemplo, uma proposta que surgiu há alguns anos para diminuir o tempo de gestação de 24 semanas para 12 semanas – esses grupos organizam manifestações, abaixo assinados, e mobilizam milhares de pessoas.

Desde 2014 acontece em Londres o Festival of Choice. Um dia de palestras, debates, workshops e painéis com especialistas e ativistas do mundo inteiro.

 

E a Irlanda do Norte?

 

A situação das mulheres na Irlanda do Norte é bastante diferente. Lá, o direito delas sobre seus próprios corpos é regido por uma lei vitoriana de 1861 (ou seja, muito antes das mulheres terem sequer direito ao voto): a Offences Against the Person Act (OAPA). Essa lei impede que o aborto seja realizado em qualquer circunstância (inclusive estupro ou má formação do feto). Apenas em 1945 houve uma pequena modificação, com o Infant Life (Preservation) Act, que autoriza o aborto caso a mulher corra risco de morte se a gravidez seguir em frente. Já o Abortion Act de 1967 não entrou em vigor na Irlanda do Norte, revelando que o Reino Unido não é tão unido assim em se tratando dos direitos das mulheres.

A situação das norte-irlandesas é uma das piores do mundo em relação ao aborto. As que têm condições financeiras organizam viagens para a Inglaterra e são atendidas pelo NHS. Apenas recentemente, no início de julho de 2017, que o BPAS – British Pregnancy and Advisory Service – retirou a obrigatoriedade do pagamento de uma taxa de aproximadamente £900 para norte-irlandesas que vão para a Grã Bretanha para fazer o procedimento. Portanto, ainda persiste o problema para mulheres que não têm condições de arcar com os custos da viagem através do Mar da Irlanda.

 

Infelizmente, a situação na Irlanda do Norte não dá indícios de que vá mudar tão cedo. Em 2016 a assembleia do país votou contra a proposta de descriminalizar o aborto em caso de má formação do feto, 59 votos contra e 40 a favor. A Polícia tem feito buscas para apreender pílulas, telefones celulares e computadores utilizados para fazer a compra online (a maior sentença para uma mulher acusada de aborto ilegal na Irlanda do Norte é prisão perpétua). E depois das eleições gerais de junho de 2017, que resultou no acordo do Partido Conservador com o ainda mais conservador Democratic Unionist Party (DUP) da Irlanda do Norte para formar um governo, há ainda uma maior preocupação, principalmente com mulheres que aguardam julgamento por fazerem aborto ilegal na Irlanda do Norte. Há pouca esperança de que o governo britânico irá intervir a favor dessas mulheres ou fazer qualquer tipo de esforço para atualizar as leis.

Atualmente, 12 mulheres viajam da Irlanda para a Grã-Bretanha diariamente para fazerem aborto (há inclusive um “apelido” para essa viagem: IMELDA – Ireland making England legal destination for abortion), e apenas 16 conseguiram o direito de realizar o procedimento no país, dentro da lei, é claro. Mas os números são vagos, já que muitas mulheres arriscam comprar pílulas online para fazer o procedimento. E foi assim que uma estudante de 19 anos foi julgada e recebeu uma sentença suspensa (que não será executada por um determinado período de tempo): seus colegas encontraram as pílulas e chamaram a polícia.

 

Alguns números ·

 

  • 200,000 abortos são feitos no Reino Unido anualmente (em média)·
  • 1 em cada 3 mulheres de até 45 anos no Reino Unido faz aborto·
  • 82% dos abortos são feitos pelo NHS·
  • 57% das mulheres que fizeram aborto no Reino Unido estavam usando algum método contraceptivo·
  • 4 em cada 5 abortos no Reino Unido acontecem antes das 10 semanas de gestação, e são feitos sem procedimento cirúrgico (com pílulas)

 

Atualização:

Em 2019, dois anos depois desse texto ser publicado, o aborto assim como o casamento entre pessoas do mesmo sexo foram legalizados na Irlanda do Norte.

 

Heloisa Righetto. Revisão por Lina Balestrini. 

 

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