Eu tenho certeza que, trocando o gênero, você já ouviu essa frase que dá título a este texto.

Sobretudo nesses tempos sombrios de flagrante retrocesso em nosso processo civilizatório, nessa combinação de fatores que formaram um ambiente em que há passe livre e muito aplauso para a disseminação de ideias extremistas e contrárias às garantias fundamentais, é muito provável que você ande ouvindo bastante que “bandido bom é bandido morto”.

Frases como esta, repetidas à exaustão, não só fortalecem a questionável ideia do cárcere como resposta a toda e qualquer natureza de desvio, como contribuem para o reforço de estereótipos clássicos de gênero.

No Brasil, o sistema de justiça, indiscutivelmente, funciona de maneira seletiva. O cárcere, primordialmente, é o lugar daqueles já socialmente excluídos, e as engrenagens todas — da criminalização de condutas, indiciamento, julgamento, ao cumprimento de pena — têm como mote a dinâmica de que, de fato, a condição de ser humano não cabe a todos nós, cidadãos, indistintamente.

E não há Lava-Jato que suavize verdadeiramente esse cenário. Basta assistir ao noticiário para uma demonstração documentada em foto e vídeo [1], de que as condições altamente salubres em que vivem os presos que cometeram crimes de colarinho branco se diferem colossalmente das condições encaradas pela esmagadora maioria dos custodiados nos estabelecimentos penais brasileiros, dignas de verdadeiras masmorras medievais, assim reconhecidas pelo próprio Estado [2], que deveria zelar para que assim não o fossem.

O resultado é que essa esmagadora maioria de indivíduos que adentram o sistema prisional — seja este um preso provisório (isto é, sem sentença condenatória, caso de aproximadamente 40% dos encarcerados no Brasil) ou condenado — cumpre uma pena maior que aquela que está ou eventualmente estará em sua sentença, que objetiva, tão somente, privar sua liberdade. Os demais direitos inerentes à existência humana, que deveriam restar incólumes, terminam violados.

Espancamento. Fornecimento de comida azeda. Inundações. Infestação de sarna, de ratos, de moscas, de baratas e rãs. Esgoto vazando pelo teto e pelas paredes [3]. Alguns exemplos da tortura institucional suportada por tantos, diariamente, e que não está prevista como pena em lugar nenhum.

A dignidade, por força de Lei, deveria ser a realidade de todos aqueles que cumprem pena nesse país.

Nesse cenário, a despeito da mais alta reprovabilidade das condições subumanas a que são submetidas as pessoas privadas de liberdade e da diferença de tratamento entre os ditos cidadãos de “segunda classe” e aqueles que se assemelham ao perfil dos presos da Lava-Jato, o estereótipo daquele que comete crime no Brasil é, indiscutivelmente, masculino, jovem, negro e pobre. Afinal, é esse mesmo o perfil genérico daqueles que vão presos nessa “democracia” chamada Brasil. Como referido, é uma lógica seletiva. Leia-se racista, classista.

E então, aos olhos dos “cidadãos de bem”, “bandido bom é bandido morto”.

Ocorre, porém, que esse estereótipo — do criminoso-padrão — aliado aos valores patriarcais, tradicionais, culturais e religiosos ainda vigentes — da mulher considerada ideal — formam um combo que invisibiliza e estigmatiza de maneira muito particular a mulher que adentra o sistema prisional.

Quando uma mulher comete um ilícito, parte-se de uma imagem caricata da mulher que transgride a lei. Há séculos, a dicotomia nos acompanha. Fomos divididas em boas e más, em donzelas e bruxas, em moças “direitas” e vadias-putas-vagabundas.

Em sendo “capaz” de cometer um crime, a mulher distancia-se, invariavelmente, dos papeis ainda indissociáveis do imaginário social daquilo que é de nós esperado. Assim, inevitavelmente, ela frustra o estereótipo clássico construído ao longo de séculos para o feminino ideal — aquele, da mulher que é naturalmente bondosa, fraca, frágil, submissa, mais propensa a respeitar as regras, cuja essência confunde-se com a criação social reducionista da “boa mãe”. E por afastar-se desse papel clássico de gênero, subentende-se merecedora de repressão exemplar. Além disso, sofre também a reprovabilidade geral em relação ao descumprimento da Lei.

Nesse sentido, afirma a pesquisadora Samantha Buglione: “[…] ‘apropriam-se de uma masculinidade que não lhes pertence’, assim, devem ser punidas pela dupla transgressão e reeducadas ‘afim de formatarem-se ao padrão de feminino ‘ideal’ […]” [4]

Assim, em virtude da aludida “dupla transgressão”, à mulher criminosa (ou, ainda, àquela que, sem condenação, paira suspeita acerca do cometimento de um crime) cabe pelo menos, uma dupla punição.

E a materialização dessa repressão reiterada, que não sofre o homem, faz-se através das estruturas sociais de poder, que — pasmem — seguem os ditames, justamente, dos valores históricos, patriarcais, culturais e religiosos responsáveis pela invenção dos estereótipos inferiorizantes de gênero.

Desta forma, a violência de gênero presente na sociedade livre tem relevância na natureza de crimes que as mulheres cometem, bem como no tratamento a elas conferido por todos os atores do sistema de justiça, desde as corporações policiais, passando por agentes penitenciários, juízes, promotores, advogados, àqueles responsáveis pela elaboração de leis que criminalizam condutas e de políticas públicas. Tudo isso, sempre em prejuízo das mulheres, e sempre levando em conta a noção de que a mulher deve seguir a cartilha do patriarcado.

Com isso, ainda que o resguardo à dignidade dos encarcerados seja um tema muito carente de defensores em uma sociedade altamente punitivista como a nossa [5], a pouca sensibilidade que existe perde-se em meio a esses estereótipos e valores. Em nosso imaginário, o preso que sofre é, quase sempre, um homem.

E foi sobre o sistema penitenciário sob a ótica do feminino que me debrucei durante o curso de pós-graduação lato sensu em Ciências Criminais, em uma pesquisa que, com muita alegria, resultou na publicação em forma de livro. Trata-se da obra intitulada “A Violência de Gênero Além das Grades: os múltiplos processos de estigmatização do feminino encarcerado”, pela editora Lumen Juris [6].

Embora tenha sido elaborada no contexto da área jurídica, a obra foi pensada para atingir também o público leigo, no objetivo de contribuir para a compreensão das nefastas consequências advindas das manifestações sociais, legais e estatais de desigualdade de gênero, num convite à reflexão profunda sobre alguns dos tortos pilares de nossa sociedade.

Importante mencionar que a alegria da publicação não é só pessoal, do sonho de menina de ter um livro publicado, mas, principalmente, é a alegria de contribuir para um tema ainda pouco explorado, e cuja análise é tão urgente e necessária, permeado por tantas violações. A alegria vem também da reafirmação do pertencimento do feminino ao espaço público. Como em todas as searas, a representatividade nos falta enquanto mulheres que são publicadas. Nós, mulheres autoras, ainda somos minoria. No Direito, por exemplo, apesar da equiparação numérica entre advogados e advogadas que se formam, o espaço conferido às mulheres pelo mercado editorial segue a lógica da desigualdade.

Se nos ambientes de privilégio a desigualdade grita, no sistema prisional a lógica é perversa.

Em uma sociedade que disfarça o masculino de “neutro” — como se as regras existentes valessem para todos da mesma maneira —, as características que distinguem o feminino do masculino, como regra, são ignoradas e os espaços e normas que os regem são construídos por homens, para homens. O sistema de justiça segue essa lógica.

O resultado é que, em um contexto fático, ao substituir um homem encarcerado por uma mulher presa, o tratamento estatal em muito não se difere. Na maioria das vezes, as especificidades de gênero restam quase que plenamente ignoradas dentro das prisões, em flagrante violação a nossa Constituição e a tratados internacionais ratificados pelo Brasil [7].

Um exemplo clássico é a falta de provisão de absorventes em muitos estabelecimentos prisionais que abrigam mulheres, resultando na indigna utilização de miolo de pão amassado, que subtraem de suas refeições, muitas vezes já insuficientes, para absorver a menstruação [8].

Mas não é só isso. Pelo simples fato de ser mulher, as aprisionadas sofrem uma série de estigmatizações.

Para analisá-las, no livro, recorri, primeiro, a um exame da desigualdade de gênero presente na sociedade livre para melhor compreensão de como o fato de ser mulher tem relevância nas relações de qualquer mulher com o outro, seja esse “outro” o masculino, o feminino, as instituições, o Direito ou mesmo a Lei.

Em seguida, propus-me a esmiuçar o panorama geral do cárcere feminino no Brasil, não sem antes esbarrar na falta de levantamento de dados oficiais responsável, atualizado e com recorte de gênero sobre o tema e nos abusos devido a este desconhecimento.

Ainda que com dificuldade, com a sistematização de dados provenientes de pesquisas regionais, independentes, relatórios de organizações internacionais e não governamentais e dos dados oficiais disponíveis, foi possível traçar o perfil da encarcerada no Brasil, que, em linhas gerais, é mãe [9], negra [10], pobre, jovem e sem estudos [11].

Sobre o tema, urge destacar que vivemos um momento de superencarceramento feminino.

Nos últimos anos, entre 2000 a 2014, houve um aumento de 567,4% no encarceramento de mulheres em contraposição a um aumento de 220% do encarceramento de homens [12].

Relevante destacar que 68% das mulheres estão presas em decorrência de delitos que se relacionam com o tráfico de drogas [13].

E no que toca a este ponto, salienta-se que no mercado ilegal de trabalho, isto é, no tráfico de drogas, a ocupação das estruturas de poder não se difere daquela que ocorre no mercado legal de trabalho: as mulheres, quase sempre, ocupam as posições subalternas. Ocupam, em regra, a posição de “[…] bucha’ (pessoa que é presa por estar presente na cena em que são efetuadas outras prisões), consumidoras, ‘mula’ ou ‘avião’ (transportadoras da droga), vapor (que negocia pequenas quanti­dades no varejo), ‘cúmplice’ ou ‘assistente/fogueteira’ […]” [14].

Não obstante, o tratamento ao pequeno traficante neste país, que patrocina o encarceramento em massa de pessoas — e que, invariavelmente, vem acompanhado de inúmeras violações a Direitos Humanos — em muito não se difere daquele conferido aos grandes articuladores do tráfico. E os resultados positivos desta escolha de política criminal não são vistos. Nem serão.

A falência da política repressiva de drogas é patente e incontestável — confirmada pelas cotidianas mortes descabidas, cujas cifras superam a de países em guerra civil oficializada —, necessita ser revista e é uma questão de gênero.

Aos que ainda não haviam se dado conta, o cárcere, é lugar de violência de gênero. De muita violência de gênero. E esta é uma realidade que necessita ser escancarada, pois a invisibilização social fortalece o já estabelecido desinteresse estatal na elaboração e condução de políticas públicas de combate a esse tipo de violência, o que é muito grave.

As violências de gênero manifestam-se na própria infraestrutura dos estabelecimentos, muitas vezes desprovidos de unidades materno-infantis, para citar um só exemplo; na saúde e assistência ginecológica deficitária; nas visitas, que são infinitamente menores às mulheres aprisionadas, o que ocasiona um abandono emocional e afetivo de grande monta; na burocracia para concessão de visitas íntimas que, em muitos estabelecimentos são mais restritivas que aquelas cabíveis aos homens, ao arrepio da lei e consoante com os estereótipos clássicos de gênero e valores morais de repressão sexual feminina ainda vigentes; na vulnerabilidade a que estão submetidas quando aprisionadas em presídios mistos, bem como em relação aos agentes penitenciários, merecendo destaque o registro recorrente de estupros de internas, tanto por aprisionados quanto por agentes penitenciários; nos trabalhos que, quando disponíveis, são compatíveis com os estereótipos de gênero e em muito não auxiliam a absorção pelo mercado de trabalho após o cumprimento de pena; entre outras inúmeras violências.

Nessa sociedade punitivista é preciso gritar bem alto para que o sofrimento humano seja notado.

Nesse país racista, classista e misógino é preciso gritar mais alto ainda quando esse sofrimento humano é negro, pobre e/ou feminino.

E esse é o meu grito.

Sobre a obra:

A Violência de Gênero Além das Grades tem por intuito lançar luz a um tema cuja escuridão lhe é intrínseca: a realidade dos estabelecimentos penais que abrigam mulheres. A autora aventura-se por assuntos como o superencarceramento de mulheres nos últimos anos, a violência contra a mulher e a irresponsabilidade estatal no cárcere, discorrendo sobre as maneiras através das quais estes fenômenos se relacionam com a desigualdade de gênero presente na sociedade livre, propondo uma mudança de paradigma.

A obra é prefaciada pela professora Dra. Alice Bianchini, Mestre e Doutora em Direito, referência no estudo da Violência Contra a Mulher, integrante da Comissão da Mulher Advogada da OAB Federal e Presidente da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica – SP.

 

Iara Gonçalves Carrilho é advogada, graduada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2014) e especialista em Ciências Criminais (2017)

 

Referências

[1] PRESOS da Lava-jato passam natal sem ceia nem luxos na cadeia. Portal G1. dez. 2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/fantastico/noticia/2016/12/presos-da-lava-jato-passam-natal-sem-ceia-nem-luxos-na-cadeia.html>. Acesso em: 30 dez. 2016.

[2] MARTINS, Luísa. Presídios brasileiros são masmorras medievais, diz Ministro da Justiça. Portal Estadão. 05 nov. 2015. Disponível em: <http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,presidios-brasileiros-sao-masmorras-medievais–diz-ministro-da-justica,10000001226>. Acesso em: 14 dez. 2016.

[3] ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e outrosTratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes: Relatório sobre a visita ao Brasil do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes. 2012, pp. 16-33. Disponível em: <http://www.onu.org.br/img/2012/07/relatorio_SPT_2012.pdf>. Acesso em: 28 dez. 2016.

[4] BUGLIONE, Samantha. O Dividir da Execução Penal: Olhando Mulheres, Olhando Diferenças, p. 151 apud PEREIRA, Luísa Winter; SILVA, Tayla de Souza. Por uma criminologia feminista: Do silêncio ao empoderamento da mulher no pensamento jurídico criminal In: SÁ, Priscilla Placha (org.). Dossiê:as mulheres e o sistema penal. Curitiba: OABPR, 2015, p. 29. Disponível em: <http://www.oabpr.org.br/downloads/dossiecompleto.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2016.

[5] De acordo com a Rede de Justiça Criminal, somos o 4ª país que mais encarcera pessoas no mundo. (REDE DE JUSTIÇA CRIMINAL. Os Números da Justiça Criminal no Brasil. Informativo Rede de Justiça Criminal n. 08, Janeiro/2016, p. 02. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/ arquivo/2016/02/b948337bc7690673a39cb5cdb10994f8.pdf>. Acesso em: 13 dez. 2016.)

[6] https://lumenjuris.com.br/shop/direito/direito-penal-e-criminologia/violencia-de-gernero-alem-das-grades-2017

[7] Entre eles, relevante mencionar as Regras de Bangkok: Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras, firmadas em 2010. (BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Regras de Bangkok: Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras. Conselho Nacional de Justiça, Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, Conselho Nacional de Justiça, 1. ed. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2016. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/03/27fa43cd9998bf5b43aa2cb3e0f53c44.pdf>. Acesso em: 16 jan. 2017)

[8] QUEIROZ, Nana. Descubra como é a vida das mulheres nas penitenciárias brasileiras. Portal Revista Galileu. 22 jul. 2015. Disponível em: <http://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2015/07/descubra-como-e-vida-das-mulheres-nas-penitenciarias-brasileiras.html>. Acesso em: 30 dez. 2016.

[9] INSTITUTO TERRA, TRABALHO E CIDADANIA. Relatório Anual do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania. 2014. Disponível em: <http://docplayer.com.br/7877324-Relatorio-anual-do-instituto-terra-trabalho-e-cidadania-i-apresentacao-do-ittc.html. p. 12>. Acesso em: 02 jan. 2016.  

[10] Importante consignar que, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (2014), 68% das mulheres aprisionadas são negras, ao passo que, no Brasil, a percentagem de negros situa-se em 53%, de acordo com os últimos dados do IBGE (2014).

[11] BRASIL. Ministério da Justiça. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias — INFOPEN MULHERES — 2014, p. 05. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf>. Acesso em: 20 nov. 2016.

[12] BRASIL. INFOPEN MULHERES — 2014, p. 10.

[13] Ibidem, p. 5.

[14] SOUZA, Kátia Ovídia Jesus. A Pouca Visibilidade da Mulher Brasileira No Tráfico de Drogas.Psicol. estud. [online]. v. 14, n.4. 2009, p. 655. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/pe/v14n4/v14n4a05>. Acesso em: 05 jan. 2015.

[15] https://lumenjuris.com.br/shop/direito/direito-penal-e-criminologia/violencia-de-gernero-alem-das-grades-2017

Compartilhe...