A imprensa feminina existe no mundo ocidental desde o século XVII e muitas vezes não sendo considerada jornalismo de fato. Porém Buitoni (1986) afirma que a imprensa feminina é parte da imprensa especializada. São aqueles periódicos destinados às mulheres. Sendo assim, a imprensa feminista é um segmento da imprensa feminina dedicado a lutar por uma causa. “Questionar e debater o cotidiano, as estruturas sociais, é esse o sentido político desses jornais” (TAMIÃO, 2009, p. 40). Algumas revistas femininas traziam temas mais modernos em suas edições, como a Claudia, que tratava de assuntos como sexo, e a Cosmopolitan, com o que chamamos hoje de empoderamento feminino. Todavia, nenhuma pregava veementemente o feminismo.

Buitoni (1986) afirma que o primeiro periódico feminista no Brasil se chamava O sexo feminino e era escrito por Francisca Senhorinha da Mota Diniz, em 1873. As reivindicações eram “educação, instrução e emancipação da mulher” (BUITONI, 1986, p.52). Dentre os assinantes estavam D. Pedro II e a princesa Isabel. Todavia, o periódico não se baseava somente em reivindicar algo, mas também publicava artigos típicos da imprensa feminina. “Somente na década de 1970 é que surge uma imprensa feminina mais reivindicatória, decorrência das contradições urbanas e sociais aumentadas pelos anos da ditadura” (BUITONI, 1986, p.54).

Segundo Leite (2003) a imprensa feminista foi inserida nos anos de 1970 na imprensa democrática, alternativa ou na imprensa nanica. Os jornais tinham formato de tabloides, com tiragem irregular e venda majoritária dentro da militância, apesar de também serem vendidos nas bancas. Além disso, tinham características de esquerda e faziam oposição ao regime ditatorial. Esse tipo de jornalismo surge principalmente na fase de maior repressão.

Melo e Schumaher (2017) afirmam que, em 1975, foi criado o principal grupo feminista: o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Terezinha Zerbine. Dele se originou o jornal Brasil Mulher. A Fundação Carlos Chagas também financiou um jornal feminista durante a década de 1980 chamado Mulherio do qual falaremos nos próximos tópicos. 

Segundo Cardoso (2004) os primeiros periódicos feministas alternativos surgiram em 1974, mas a maioria das publicações nasce na década de 1980. Nos anos 90 há uma queda na produção de novos jornais com essa temática. Essa oscilação é esperada, visto que coincide com o início e fim da segunda onda feminista e o advento da internet. Sobre a quantidade de produções regionais, Cardoso (2004) catalogou 75 publicações feministas entre as décadas de 1970 e 1990, sendo sete da região sul, oito do centro-oeste, doze no Nordeste, e 46 na região sudeste. A região norte não possui registro de nenhum título.

A imprensa feminista ganhou muitos periódicos regionais na década de 1980 “como o jornal Libertas, editado por um grupo de mulheres de Porto Alegre (1981), o Chanacomchana, publicado pelo Grupo de Ação Lésbica Feminista de São Paulo (1984) e o Maria Maria, publicado pelo grupo Brasil Mulher de Salvador, a partir de 1984. ” (MELO; SCHUMAHER, 2017, p.3).

Todavia, era muito difícil os jornais feministas se manterem por muito tempo. Como são da imprensa alternativa, não estão inseridos na grande mídia. Logo, não possuíam dinheiro suficiente para se manter no mercado. “Fora do esquema da grande imprensa, sem o patrocínio de alguma entidade, é muito difícil conseguir recursos para manter a circulação” (BUITONI, 1986, p. 56).

Apesar da curta vida, os jornais feministas tiveram grande importância na disseminação do movimento. Tamião (2009) afirma que com esses periódicos as mulheres passaram a ter mais acesso ao conteúdo feminista, não somente através de livros. As principais pautas eram a violência doméstica, contracepção, direitos trabalhistas, mais creches, e contra a carestia.

 

Mulherio

 

Em sua edição de número zero, logo na primeira página, o jornal explica o porquê de o nome ser Mulherio, termo até então considerado pejorativo, relacionado à histeria, gritaria e afins. Porém, o periódico trouxe a palavra com o significado de conjunto de mulheres a fim de restaurar a dignidade da mulher perante a sociedade. “Mulherio, por sua vez, nada mais é do que ‘as mulheres’, ou ‘uma grande porção de mulheres’. É o que somos, é o que este jornal será” (MULHERIO, 1981, p. 1).

O jornal Mulherio é um dos exemplos de jornais feministas. Buitoni (1986) diz que o jornal foi lançado entre março e abril de 1981 por um grupo de estudiosas das causas feministas da Fundação Carlos Chagas. Cardoso (2004) conta que Mulherio foi o periódico com mais tempo de existência em comparação aos outros lançados na época como Brasil Mulher e Nós Mulheres, com 36 edições e durou até o ano de 1988.

Enquanto outros periódicos feministas famosos da época como Brasil Mulher e Nós Mulheres viam o feminismo como uma luta que englobava diretamente a democracia, Mulherio priorizava as pautas sobre igualdade de gênero. Kas (2016) afirma que Mulherio não tem o viés marxista dos outros jornais feministas porque era um jornal de cunho feminista e não uma publicação de oposição direta ao regime. Ou seja: fazia críticas à ditadura de forma mais velada. É importante lembrar o contexto de criação do Mulherio. “Primeiro, depois da aprovação doCongresso da Lei da Anistia, em 28 de agosto de 1979; segundo, os partidos políticos de esquerda já estavam vivendo um período de legalidade” (TAMIÃO, 2009, p. 36). Tais pontos são relevantes, pois eram reivindicações de jornais anteriores. “No entanto, Mulherio teve como pauta assuntos políticos como a mobilização ‘pelas diretas já’, as eleições de 1982 e as discussões acerca da Constituinte” (TAMIÃO, 2009, p. 36). Sobre os temas feministas abordados no jornal, Tamião (2009) diz que os mais frequentes eram sobre a situação da mulher no mercado de trabalho, democracia doméstica, sexualidade e aborto.

Inicialmente, a proposta era de se fazer um boletim que divulgasse as pesquisas sobre a problemática da mulher no Brasil, mas acabou se expandindo e virando um jornal. Contudo, as mulheres que compunham o conselho editorial de Mulherio tinham diferentes visões sobre como o texto deveria se suceder. “As jornalistas acusavam as acadêmicas de usarem uma linguagem difícil para o público leitor; por sua vez, as acadêmicas acusavam as jornalistas de vulgarizarem a produção feita nas reuniões de pauta” (TAMIÃO, 2009, p. 38).

Segundo Kas (2016), o jornal teve incentivo da Fundação Ford até 1988 com periodicidade bimestral e 16 edições desde sua criação, em 1981, a outubro de 1983. Mulherio teve três fases: a primeira foi com Fúlvia Rosemberg, pesquisadora responsável pelo projeto, e Adélia Borges como jornalista e editora. Na segunda fase, quando o jornal se desvincula da Fundação Carlos Chagas por questões burocráticas, quem assume é a jornalista Inês Castilho. Em 1988, o Mulherio passa a se chamar Nexo, Feminismo e Cultura. A partir daí o enfoque feminista começa a perder força, a Fundação Ford deixa de financiar e o jornal fecha após lançar somente dois números nessa terceira fase.

 

O feminismo de Mulherio

 

Ao analisar as publicações de Mulherio, pode-se ver que algumas problemáticas da década de 1980 são extremamente atuais. Em sua edição de número zero, há uma notícia de Pilla (1981) sobre um congresso em que se debatia os direitos das empregadas domésticas. Entre as reivindicações estavam a regulamentação do trabalho para receber salário mínimo, 13º salário, FGTS, férias e oito horas de trabalho por dia. A conquista só ocorreu em 2015, 34 anos depois. Outros assuntos ainda atuais como o trabalho infantil e a escravidão são também trazidos ao longo das edições. Algumas pautas trazidas pelo jornal são discutidas pelo feminismo atual: como a maternidade compulsória, a divisão do trabalho doméstico, o feminismo partidário, e a desigualdade entre homens e mulheres no mercado de trabalho.

Como dito anteriormente, havia uma discussão sobre a linguagem do jornal. Ao final, ele acabou por ter uma linguagem pouco técnica de fácil leitura. Além disso, suas páginas são completamente jornalísticas, ou seja, se preocupam principalmente com traduzir acontecimentos e não em opinar sobre, papel que fica para os artigos de opinião e crônicas. O periódico não deixa de trazer colunas e cartuns como qualquer jornal, e sempre há certa problematização em seus conteúdos.

Figura 1 – Ciça. Mulherio. São Paulo. nº 0. 1981. 

 

A editoria feminista é clara, pois, a todo o momento, o jornal se preocupa em divulgar e enaltecer os trabalhos de mulheres e reforçar as reivindicações do movimento. Apesar de não haver publicidade, em suas páginas a partir da edição de número um aparece a sessão “Notas”, onde sempre havia divulgação de congressos, exposições, pesquisas, etc., e “Endereços”, em que constam endereços de coletivos feministas em toda as regiões do Brasil.

Ainda que o enfoque do jornal não fosse político, haviam alguns números com pautas que tratavam por exemplo de crimes contra os direitos humanos cometidos por governos latino-americanos. Em sua edição de número um, Tinker (1981) questiona em um artigo o desaparecimento da militante feminista Alaíde Foppa na Guatemala. Outra reportagem que envolve política veio na terceira edição, falando sobre como as mulheres lutam contra o machismo no socialismo cubano.

Mulherio também faz críticas a outras mídias, quando elas tratam da mulher. Na edição de número um, Correa (1981) faz uma crítica à famosa revista feminina, Capricho, ao responder uma carta de uma leitora sobre o tamanho do clitóris dela e, segundo Mulherio, incentivar a mutilação genital feminina e a imposição de padrões de beleza, enquanto Cunha (1981) compara a cobertura de jornais e revistas dos acontecimentos do dia 8 de março.

Pode-se dizer que Mulherio conseguiu tratar de todas as problemáticas possíveis e abranger todas as classes sociais. Da mulher que é mãe e dona de casa, até a acadêmica, todas elas foram representadas e ouvidas de alguma forma pelo jornal. Sua linguagem fácil conseguiu atingir vários grupos, não somente as militantes. Além disso, o periódico trouxe muitos questionamentos sobre assuntos de interesse popular de forma pertinente. O jornal conseguiu ser um sucesso enquanto existiu, visto que possuía mil assinaturas com apenas duas edições. Com certeza Mulherio conseguiu fazer mulheres e homens questionarem sobre privilégios e desigualdades e mostrar que é possível lutar pela democracia e pelos direitos de uma minoria política ao mesmo tempo.

Heloísa Dantas é aluna do curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo da Universidade Federal do Espírito Santo. Este artigo fez parte de um trabalho apresentado na disciplina História dos Sistemas de Comunicação no Brasil. Revisão por Lina Simões Balestrini. 

Referências Bibliográficas

BUITONI, Dulcília Schroeder. Imprensa feminina. São Paulo: Ática, 1986

CARDOSO, Elizabeth. Imprensa feminista brasileira pós-1974. Revista Estudos Feministas, [s.l.], v. 12, p.37-55, dez. 2004. FapUNIFESP (SciELO).

CORREA, Mariza. Em contraponto, “Capricho” e “Mulherio”. Mulherio. São Paulo, p. 14-14. maio 1981.

CUNHA, Maria Carneiro da. O 8 de março na imprensa paulista. Mulherio. São Paulo, p. 14-14. maio 1981.

DUARTE, Constância Lima. Feminismo e literatura no Brasil. Estudos Avançados, [s.l.], v. 17, n. 49, p.151-172, dez. 2003. FapUNIFESP (SciELO).

KAS, Yasmin Sayegh Al. Imprensa feminista, jornal Mulherio (1981-1988) e a defesa do direito ao aborto no Brasil. 2016. 35 f. TCC (Graduação) – Curso de História, Universidade de Brasília, Brasília, 2016.

LEITE, Rosalina de Santa Cruz. Brasil Mulher e Nós Mulheres: origens da imprensa feminista brasileira. Revista Estudos Feministas, [s.l.], v. 11, n. 1, p.234-241, jun. 2003. FapUNIFESP (SciELO).

MELO, Hildete Pereira de; SCHUMAHER, Schuma. A segunda onda feminista.  MULHERIO. São Paulo, mar. 1981.

PILLO, Sônia. Domésticas: as máquinas que servem o lar. Mulherio. Porto Alegre, p. 2-2. Março. 1981.

PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, história e poder. Revista de Sociologia e Política, [s.l.], v. 18, n. 36, p.15-23, jun. 2010. FapUNIFESP (SciELO).

TINKER, Catherine. Alaíde Foppa: desaparecida. Guatemala 19/12/1980. Mulherio. São Paulo, p. 7-7. Maio 1981

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