Esta postagem faz parte da Blogagem Coletiva pela Visibilidade Bissexual. Originalmente publicada no Medium e reproduzida com autorização da autora.

Recentemente eu comecei um curso sobre pensamento lésbico contemporâneo e tive contato com textos poderosos e empoderadores de mulheres lésbicas sobre a lesbianidade e seu potencial revolucionário. A forma como essas mulheres se apropriaram e ressignificaram sua sexualidade, atribuindo uma força política transformadora despertou em mim sentimentos diversos, mas foi, sobretudo, inspirador. Me levou a refletir sobre a força que ousar a viver de uma forma diferente do padrão capitalista, heterossexista, patriarcal e racista tem.

Eu não sou lésbica, sou uma mulher cis e bissexual, portanto minha experiência — apesar de vários pontos em comum — é diferente da dessas mulheres. Mas, se essa ousadia de viver apesar da norma, de rejeitar o padrão é um ato de resistência, minha experiência também o é. Ser uma pessoa, uma mulher negra, monodissidente em uma sociedade que impõe a heterossexualidade como única alternativa correta é um ato de resistência. Acredito que toda mulher que se apropria de sua sexualidade e se recusa a se adequar aos papéis impostos traz em si a resistência.

Como uma mulher não-branca, me assumir bissexual é assumir riscos e ameaças à minha integridade física, psicológica e emocional. É um ato político que resulta na violência, retaliação e hostilidade que acompanha toda e qualquer mulher que se propõe a negar a ordem vigente. E, seria uma ilusão afirmar que a bissexualidade é, ainda que ligeiramente, a ordem estabelecida.

A heterossexualidade, associada à monogamia, não se tornou norma por acaso, também não é fruto de um instinto natural e eterno, resquício de nossas existências pré-históricas. É uma forma de controle, de manter a supremacia branca e masculina daqueles que detêm o poder e a propriedade. No capitalismo, a imposição da monogamia heterossexual e patriarcal, aliada ao racismo é uma forma de assegurar que aqueles que detêm o capital e seus descendentes continuem esse monopólio. Racismo, heterossexismo, sexismo são instrumentos muito bem orquestrados na lógica capitalista, um não existe sem o outro e o capitalismo não seria o que é sem eles. Me recusar a exercer o papel que me foi atribuído nessa dinâmica é um ato de resistência. E significa se tornar um alvo fácil.

Em conformidade com esse modelo heterossexual de dominação, as mulheres, de forma geral, são frequentemente definidas pelos relacionamentos que tem ou deixam de ter. Solteirona, “para casar”, dona, puta, vadia, frígida, puritana, mal comida, rótulos que recebemos ao longo da vida, usados principalmente por homens que buscam nos reduzir e nos fazer retornar ao ideal de domesticidade. Quando me assumo bissexual, assumo que, independente do relacionamento que estabeleci, minha sexualidade permanece a mesma. Estar com um homem, com uma mulher, com uma pessoa não binária, nada disso determina minha sexualidade, quem a determina sou eu, a partir da minha subjetividade e experiências. Eu me recuso a ser definida pelos meus relacionamentos, defendo e luto pelo direito de que minha sexualidade e eu mesma existam e se mantenham além deles. Reivindicar esse direito, sem abrir mão, sem fazer concessões, é uma luta diária e uma conquista em direção à liberdade e autonomia que quero alcançar.

Essa luta não vem sem grandes riscos. Na década de 80, Cheryl Clarke publicou um texto no livro This Bridge Called my Back: Writings by Radical Women of Color, onde apontou os riscos que mulheres lésbicas assumiam ao reivindicar para si uma identidade e um modo de viver livre da dominância masculina, os perigos que o rompimento com a norma trouxeram. Minha experiência como uma mulher negra assumidamente bissexual e números extremamente perturbadores sobre a realidade sócio-econômica de pessoas bissexuais mostram que assumir um modo de vida bissexual ou não monossexuais também trazem riscos alarmantes. Nós também rompemos com a supremacia heterossexista e também ousamos a propor novas formas de estabelecer relacionamentos que não o tradicional — e hierárquico — modelo homem (cis) e mulher (cis), mesmo que, nas palavras da autora, exista para nós mulheres não monos “a possibilidade da relação com um homem”.

Insisto que essa possibilidade, tão frequentemente usada para nos deslegitimar e nos silenciar, não resulta em uma realidade mais “segura” nem nos protege de retaliações. Em uma sociedade tão profundamente sexista, não acredito que qualquer mulher esteja segura em qualquer modelo de relacionamento. Para nós, mulheres bissexuais, nos relacionarmos com homens e, ainda sim, manter nossa identidade apesar dele e de sua dominância é um desafio. Recusamos o controle que as instituições garantem aos homens em relação às mulheres que eles se relacionam, rejeitamos que sua presença em nossas vidas tenham poder sobre a forma que definimos a nós e nossas sexualidades. Por isso, não fico surpresa com os números altos de violência doméstica e sexual contra mulheres bissexuais, a resposta mais comum às mulheres que impõem sua autonomia e integridade é a violência. O que é a objetificação e apropriação de nossa sexualidade senão a tentativa de nos submeter a seu desejo e seu domínio? De retomar o controle sobre nossos corpos?

Escapar do controle masculino, ousar a ser, sentir e desejar além dele e apesar dele é uma das piores ofensas que uma mulher pode cometer. Entretanto, aqui estamos, afirmando esse ser, sentir e desejar diariamente.

Semelhante às mulheres que tenho lido, nós mulheres monodissidentes também construímos e lutamos pelo direito de nos relacionarmos com outras mulheres (sejam elas monodissidentes ou lésbicas). Lutamos lado a lado de nossas companheiras para resistir à imposição heterossexual e a reprodução da lógica de que uma força masculina é necessária para a existência de uma relação plena. Também sofremos retaliações e violências por essa ousadia. Entretanto, nos recusamos a nos diluir em uma identidade que não é nossa, a sermos reduzidas à metade de um ser, à vítima de estilhaços e respingos. Esse relacionamento tampouco nos define.

Obviamente essa recusa não é aceita de forma passiva, muitas vezes nos vemos situadas na dicotomia tradicional entre a donzela indefesa e a Femme Fatale. Nos reduzem à garotinhas indefesas e frágeis, reféns da heterossexualidade compulsória e vítimas da Síndrome de Estocolmo, completamente desprovidas de agência. Ou como predadoras perigosas e maliciosas, cujo objetivo é usar e sugar outras mulheres. Estereótipos que retornam incessantemente para nos atacar, nos assombrar e nos deslegitimar.

Na introdução de O Segundo Sexo, Simone de Beauvoir afirma que a sociedade judaico-cristã ocidental tem seu alicerce na alteridade, na definição do Um pela oposição do Outro, sua diferenciação em polos radicalmente opostos e conflitantes. A divisão binarista e essencialista que permeia toda a sociedade capitalista que vivemos. Ironicamente, nós bissexuais, que carregamos no nome a alusão a esse binarismo, apresentamos uma forma de viver e de experienciar a nossa sexualidade rompendo com essa polarização, tão cara e necessária para a manutenção do poder. Desafiamos essa divisão de polos opostos, as divisões homem/mulher, hétero/homo, as categorias fixas e hierarquicamente situadas. Explicitamos como essa polarização é tão artificial, frágil e fruto de um sistema de dominação quanto a própria heterossexualidade. Ao rompermos com a dinâmica do Um e do Outro, acabamos nos tornando o Outro de todos, vistos como uma ameaça e um perigo.

Diante desta ameaça, tentam nos prender em caixinhas, estabelecer réguas morais, códigos de conduta e comportamento que visam nos conter. Estabelecem quais pessoas monodissidentes serão legitimadas, quase sempre aquelas que mais se aproximam do que consideram ideal. É uma imposição violenta, similar as que dividem mulheres entre putas e santas, pessoas não brancas entre boas e más. Nossas experiências e trajetórias são revisadas, analisadas e mutiladas em prol do conforto daqueles que se escandalizam com as possibilidades que nossa existência desperta. Mesmo dentro dos movimentos feminista e LGBT, nós somos vistas como uma ameaça aos padrões de respeitabilidade e moralidade, o monstro a ser contido. Não se enganem ao se convencerem que estão se preservando, qualquer tentativa de normalização é uma das formas mais sofisticadas de controle e colonização.

Diante desta ameaça, tentam nos prender em caixinhas, estabelecer réguas morais, códigos de conduta e comportamento que visam nos conter. Estabelecem quais pessoas monodissidentes serão legitimadas, quase sempre aquelas que mais se aproximam do que consideram ideal. É uma imposição violenta, similar as que dividem mulheres entre putas e santas, pessoas não brancas entre boas e más. Nossas experiências e trajetórias são revisadas, analisadas e mutiladas em prol do conforto daqueles que se escandalizam com as possibilidades que nossa existência desperta. Mesmo dentro dos movimentos feminista e LGBT, nós somos vistas como uma ameaça aos padrões de respeitabilidade e moralidade, o monstro a ser contido. Não se enganem ao se convencerem que estão se preservando, qualquer tentativa de normalização é uma das formas mais sofisticadas de controle e colonização.

Sobre a autora: Isabela Sena é feminista e bissexual. Historiadora e educadora. Pesquisadora autônoma.