Não sei bem porque comecei a escrever isso aqui, acho que foi porque ontem lembrei de você. Passei em frente a uma casa com um pé de romã e lembrei do tanto que você gostava. Eu odiava cheiro de romã, mas fazia parte da vida que a gente tinha, e que foi se gastando, tipo cheiro de fruta mesmo que fica no ar. No meio disso tudo, eu te amei, e como. Fiz muita merda também, mas não queria que essa carta fosse um pedido de desculpas. Nosso tempo juntas não precisa ser desculpado. Às vezes, fico pensando em tudo que não deveria ter feito, mas você sabe, Ju, nós duas seríamos as mesmas, mil vezes as mesmas.

O que será que você anda fazendo? Ainda tá correndo? Queria ficar com você de novo. Tenho certeza de que a gente não dá mais certo – você é caso perdido – mas isso não muda o fato de que gosto do seu corpo com o meu. Em pensar que te ensinei de tudo porque você nunca tinha ficado com mulher na vida. E foi bom, tão bom, até mesmo aquelas transas que mais pareciam uma luta corporal. Acho que, no fundo, queríamos descontar a dor de uma na outra.

Guardamos muito rancor. Não fomos capazes de curar nossas feridas recíprocas, e isso me magoa muito. Você me magoou muito, e fiz tanto por você. Peguei aqueles quatrocentos de salário e arrumei uma casa de merda pra gente, mas era sua, esperando o dia de você chegar. O dia do quase, o dia do apocalipse. Quando lembro… tenho algumas cicatrizes na perna, mas até hoje não consigo acreditar como não quebrei nada quando sua mãe jogou o carro pra cima de mim. Eu, a vagabunda, a safada que fez a cabeça da filhinha tão religiosa dela. Se ela soubesse o que já andava na sua cabeça quando te conheci, eu só te ensinei o que você sempre quis fazer. Eu, a vagabunda que esperou você criar coragem pra ser o que sempre quis ser. Sete anos mais nova e tive que te mostrar tanta coisa, nem botar uma roupa na máquina você sabia. Coisas de quem sempre teve uma mãe por perto pra fazer tudo, você sempre foi uma mimada, e eu tinha inveja de você por isso. Nunca te falei isso, mas, antes de conhecer a sogrinha, eu torcia muito pra que ela pudesse ser uma mãe pra mim também. Ao invés disso, ela me atropelou naquele apocalipse e você ainda teve a cara de pau de ir embora com ela. Nossa, naquele dia você me deixou doida e sozinha. Parece até romântico, mas foi horrível. Sorte que já estou acostumada a esse tipo de merda acontecendo comigo. Tive que esperar mais uns dois meses até você criar coragem pra fugir de casa. Covarde. Fugiu e voltou pra mim, eu lembro como se fosse hoje, te abracei como um refúgio e jurei pra mim mesma que jamais te deixaria ir embora de novo. Pra não quebrar a promessa, eu que fui embora.

Tô sozinha. Digo que é por escolha da vida, sabe. Não tenho muitos arrependimentos, mas sinto saudades. A gente ria muito de tudo, dos livros que a gente lia, da gaveta quebrada da cozinha, do vizinho maconheiro. Je t’aime de la lune et retour. Eu nunca vou apagar essa frase. Você ainda tem a sua ou tatuou alguma coisa por cima só de raiva? Acho justo. A gente foi se abandonando aos poucos, se largando, mas eu é que fui embora no final. Eu, a vagabunda, a palavra que saiu da sua boca que beijei, a boca que me traiu também. Com quantas mulheres você ficou enquanto eu ficava com tantas outras? Enquanto eu ficava com a Maria? Somos duas putas, Ju, duas cretinas. Nosso amor, parecia que ele nunca ia acabar, mas faltou cuidado. Olha, agora tá chovendo e tá meio friozinho, tô usando aquele seu casaco amarelo que já tá caindo aos pedaços, mas ele é fofinho. Espero que não esteja chovendo amanhã de manhã, você sabe como morro de preguiça de acordar cedo em dias cinzas.

Outra coisa que lembrei foi do fim de semana na casa da minha vó. Você lembra? Até sua sobremesa querida, ela fez. Foi tudo tão de boa, meio que um sonho onde eu era aceita, onde só tinha carinho. Era só o que eu queria o tempo todo, carinho e família. Foi um almoço-teatro, com cenas de comercial de margarina. Depois, as cortinas fecharam e ficamos sós, foi a deixa para nos destruirmos, mais de uma vez. Você diz que a culpa foi da Maria, ela que me roubou de você, mas você sabe: no fundo, eu apenas me apaixonei por outra pessoa, simples assim porque não existe um para sempre. Tivemos nossos pequenos contos de fadas, manhãs românticas, sexo na cozinha, abraços de cansaço no fim do dia, momentos dos quais eu ainda não me despedi, acho que é por isso que estou aqui, fingindo que vou enviar essa carta pra você. Eu sei que não vou porque estou escrevendo em um papel todo manchado de comida, que estava em cima do balcão, e eu ainda quero te impressionar, ainda quero aquele seu risinho de satisfação que eu ganhava quando fazia algo que você gostava.

Olha, acho que é isso, um pouco do que não foi dito ou do que foi repetido tantas vezes que não nos demos conta. Ju, esse rancor que nos sobrou é também um pouco de amor, e é só nosso. Bem que podíamos ter um café e uma noite ainda. Você volta um dia?

 

Thainá Carvalho Costa Xavier. Escritora aracajuana de 29 anos que vive em busca de pessoas para encontrar histórias.
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