Esses dias vi muitas pessoas comentando nas redes sociais a notícia de que a versão em quadrinhos do livro O Diário de Anne Frank havia sido suspenso do material paradidático das turmas do 7º ano do ensino fundamental de uma escola de Vitória, no Espírito Santo.

O motivo foi o desconforto por parte de alguns pais pelo conteúdo ligado à sexualidade presente no livro. Lembrando que as crianças estão na faixa dos 12 anos de idade. Em matéria veiculada pelo G1, um dos pais disse:

“A minha filha trouxe a informação pra mãe dela, de que ela tinha lido o livro e começou a falar do que estava acontecendo em sala de aula, de que as crianças estavam repercutindo o conteúdo do livro na sala. Ela contou que alguns menino estavam fazendo chacota com as meninas, porque o livro fala do órgão genital feminino”.

E continua:

“Ela comentou com a gente acerca de penetração, de masturbação, de colocar o dedo na vagina. Coisas que não são para a idade dela. Ela sequer tinha curiosidade de sabe aquelas coisas ainda, mas depois que ela leu, a gente teve que explicar, porque é melhor pai e mãe explicando do que um amiguinho ou uma pessoa mal intencionada”.

Lembro bem da época que ganhei um exemplar de presente de uma amiga da minha mãe. Eu e essa amiga da minha mãe sempre compartilhamos do interesse por livros, desde que eu era pequena, pois sempre fui vidrada em livros. O Diário de Anne Frank foi um dos meus livros preferidos dessa fase juvenil, não por menos é um clássico da literatura.

Não conheço a versão em quadrinhos, mas tenho muitas lembranças do livro. Lembro que o formato de diário me encantou, lembro do meu interesse pelo fato de ser uma história verídica – o livro que eu ganhei continha registros fotográficos das pessoas e fatos mencionados na obra. Lembro da sensação que tive começando a ler O Diário, do impacto que foi, para mim, ver uma menina que levava uma vida normal subitamente precisar se esconder da perseguição aos judeus, da tensão da fase em que precisou ficar em um esconderijo e da dor que foi ler sobre os horrores dos campos de concentração nazistas e descobrir esse momento histórico com um realismo pungente.

Curiosamente, não me lembrava dessa parte que causou tanto desconforto nos pais ao ponto de se organizarem para suspender a leitura do livro pelos alunos. Isso me chamou a atenção ao ler essa notícia sobre a polêmica que envolveu a obra na escola: de forma alguma a questão sobre sexualidade foi algo que marcou na minha leitura quando criança. Mas fui pesquisar o que o livro dizia exatamente sobre a tão polêmica vagina. Encontrei esse trecho:

“Queria perguntar ao Peter se ele sabe como são as meninas aqui embaixo. Acho que os garotos não são tão complicados quanto as meninas. É fácil ver como eles são nas fotografias ou pinturas de nus masculinos, mas com as mulheres é diferente. Nas mulheres, os genitais, ou seja lá qual for o nome, ficam escondidos no meio das pernas.

 

O Peter provavelmente nunca viu uma menina de perto. Pra falar a verdade, nem eu. Com os meninos é muito mais fácil. Como é que se pode descrever as partes das meninas? Pelo que ele falou, sei que ele também não sabe exatamente como as coisas todas se encaixam. Ele falou no colo do útero, mas isso é lá dentro, não dá pra ver. Em nós, mulheres, é tudo bem arrumadinho. Até os meus onze anos ou doze anos, eu não tinha percebido que havia mais de um par de lábios lá dentro, já que eles não ficam a vista. O mais engraçado é que eu achava a urina saia pelo clitóris. Uma vez perguntei a Mamãe o que era aquele montinho, e ela disse que não sabia. Quando ela quer, sabe muito bem se fazer de boba!… Mas voltando ao assunto.

 

Como se pode descrevê-los, sem nenhum modelo? Será que eu devo tentar mesmo assim? Bom, então lá vai!… Quando a gente está de pé, na frente só dá pra ver o cabelo. Entre as pernas há duas abas macias e gordinhas, também cobertas de pêlo, que ficam juntas quando estamos de pé, de modo que não dá pra ver o que há lá dentro. Quando a gente senta, elas se separam, e, no interior, são bem vermelhas e carnudas. Na parte de cima, entre os lábios externos, existe uma dobra de pele que, pensando bem, parece uma espécie de bolha. Isso é o clitóris.

 

Depois vêm os lábios internos, que também ficam apertados, parecendo uma prega. Ao se abrirem podemos ver um montinho carnudo, mais ou menos do tamanho da ponta do meu polegar. A parte de cima tem uns buraquinhos, que é por onde sai a urina. A parte de baixo parece que é só pele, mas é aí que fica a vagina. Quase não dá pra encontrar, porque as dobras de pele escondem a abertura. O buraco é tão pequeno que nem consigo imaginar como um homem pode entrar ali, e menos ainda como um bebê pode sair. Já é muito difícil tentar enfiar o indicador. Isso é tudo, e ainda assim tem um papel tão importante!”

 

De certa forma eu entendo a preocupação dos pais. De verdade. Esse sentimento de estarem antecipando um momento da vida dos filhos é algo muito presente nos dias de hoje. As crianças têm um mundo virtual à palma das mãos com acesso a diversos conteúdos que fogem do nosso controle.

Mas veja bem, o livro foi escrito por uma menina que ganhou um diário como presente no seu aniversário de 13 anos. Não há nada que uma menina que viveu na década de 40 possa falar sobre vagina ou sexualidade que não tenha sido explorado exaustivamente pelo que nossos filhos veem hoje na TV, no cinema e nos milhares de vídeos no YouTube que cansam de assistir.

Essas dúvidas sobre os órgãos sexuais, masturbação, sexo, são questionamentos que invariavelmente todo jovem vai ter. E são assuntos que invariavelmente irão surgir, se não for em O Diário de Anne Frank será de outra forma. O tabu com relação ao tema impossibilitou que alguns pais vissem essa leitura como uma oportunidade de conversar sobre esses temas a partir de uma obra realmente apropriada para o público infantil, ao invés de esse tema surgir quando um colega abrir um vídeo pornô pelo celular no recreio.

É também sintomático – como muitos apontaram nas redes sociais ao lerem a notícia – que em um livro que relata em primeira pessoa o holocausto, o desconforto sentido pelos pais tenha sido causado pela menção de uma vagina.  Isso mostra o grande tabu que ainda é falar sobre esses temas.

Como mãe, também acho desconfortável falar sobre isso com crianças. Não sabemos ao certo como começar, o que exatamente falar. Ser pai ou mãe não vem com um manual de como lidar com as coisas. Mas eu sei que temas assim só deixam de ser tabu a partir do momento que encaremos de frente o assunto e começarmos a difundir informação sobre essas questões. O tipo de informação que encontramos… em livros.

 

 

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