Capa do livro/Autora Mariana Enriquez

O lançamento de um livro de terror escrito por uma mulher sempre vem acompanhado de um burburinho que me deixa intrigada, curiosa, confusa: “Autora lança livro de terror. Narrativa surrealista. Influência inegável de Cortázar. Fã de Stephen King. Comparável a Edgar Allan Poe. Será que dá medo mesmo? Não, porque não é bem terror, terror. É terror psicológico.” Sempre tem um psicológico que nunca sei bem como interpretar. Foi assim com As coisas que perdemos no fogo, de Mariana Enriquez, lançado no Brasil em 2017, pela Intrínseca com tradução de José Geraldo Couto.

Fiquei um tempo tentando desvendar o que seria esse terror – querendo levar susto, mas sem saber se aguentaria o tranco. E é mesmo muito difícil avaliar ou situar os doze contos argentinos que se passam em diferentes contextos e épocas. Mariana Enriquez parece ter reunido lugares sombrios, situações macabras e personagens insatisfeitos, frustrados ou perturbados. Paira entre os contos algo de jovem, rebelde e marginal. E mulheres. Mulheres deslocadas de alguma forma: seja no corpo (A casa de Adela, Fim de curso, As coisas que perdemos no fogo), na condição (Teia de aranha, Os anos intoxicados) ou no espaço (O quintal do vizinho), e expressam esse deslocamento através de raiva, vingança, indignação e violência (contra si mesmas, inclusive). Daí as situações grotescas e horríveis. Mas há também mistério, sobrenatural e humor (intragável, que fique claro).

Fiquei literalmente arrepiada com o conto em que uma menina começa a se automutilar aparentemente do nada e intriga as amigas do colégio (por favor, leiam!). Gostei da história em que a mulher vive aprisionada sabe-se lá por que a um marido insuportável – juro que é engraçada também (ou perdoem meu mau gosto). Impossível não gostar do conto em que a protagonista começa incomodada com o vizinho e acaba por se descobrir infeliz com carreira, casamento, casa, condição mental e, por que não, figuras aterrorizantes que aparecem por aí. Tem contos com uma aura de aventura violenta e sanguinária, que lavam a alma, sim. Os lugares e o tempo são personagens. As mulheres são movidas por vingança, atordoamento ou fantasmas. São heroínas difíceis, estranhas, mas todo o universo é muito rico. No fundo, é possível se ver em um pouco de tudo ali. E isso sem apelar para o estereótipo da famosa mulher louca.

Numa entrevista a autora contou que nesse livro acabou encontrando personagens mulheres que naturalmente dão voz às questões contemporâneas. Ao ler o livro, penso que ela não estava se referindo apenas à condição da mulher na sociedade quando diz isso. São vozes femininas que naturalmente traduzem os dilemas do contexto político atual de vários lugares e que trazem um terror que não tem função apenas metafórica. Não se tratam só de alegorias de um povo paranoico, violento e ainda traumatizado pelos fantasmas da ditadura, não se tratam de assombrações que falam sobre aprisionamento, fragilidade e revolta. São fantasmas e traumas e aprisionamento e fragilidade e revolta, tudo junto.

Questiono esse terror, esse terror psicológico, porque toca em um lugar sensível e subjetivo, mas também real. O terror de passar por uma situação humilhante e degradante, que vai atingir um ponto delicado e fazer você questionar a realidade, pensar e repensar aquilo, reviver a situação em diversos outros momentos. Esse desconforto é familiar para a mulher: são histórias de terror que já se tornaram reais para nós. Mas também contam um pouco sobre as histórias da contemporaneidade.

 

Marcela Ramos. Formada em Produção Editorial pela UFRJ, trabalha com edição de livros e adora ler, escrever e conversar.
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