Atenção contém spoiler

 

Como eu era antes de você tem tudo para ser mais uma narrativa água com açúcar, na qual uma linda história de amor floresce diante da conjuntura inesperada, em que a doce moça com seu jeito único e especial vai provocar grandes mudanças na vida de um mocinho carrancudo e amargo. Já estamos saturadas dessas narrativas. No entanto, o filme merece nossa atenção ao sair da mesmice em que estamos acostumadas a consumir.  Ele nos faz deparar com a oportunidade de percepção de comportamentos a que fomos condicionadas a praticar, sem que façamos reflexões ou percebamos o quanto esses padrões podem ser emocionalmente prejudiciais para nós mulheres. O filme, sem dúvida, nos leva a outros tantos temas socialmente polêmicos como, entre outros, a questão da eutanásia. Porém, quero deixar claro que esse não é o foco de nossa análise, aqui o recorte irá abordar o sofrimento mental da mulher diante de comportamentos e idealizações que são tradicionalmente entendidas como femininas.

Lou é uma jovem otimista e bem humorada, seu estilo peculiar de se vestir é transmitido ao espectador como uma virtude e forma de manifestar sua criatividade.  Devido a necessidades financeiras, começa a trabalhar como cuidadora de Will, um jovem milionário e tetraplégico que se encontra nessa condição após ter sofrido um acidente. O Willian do passado era apaixonado pela possibilidade de se manter em movimento. Praticante de esportes radicais antes do acidente, fica claro que adrenalina e exploração de belezas naturais são as fontes de prazer do protagonista. Já no início da trama percebemos que Will não aceita sua atual condição física; seu humor e a forma como trata as pessoas ao seu redor deixam evidente para Louisa sua condição emocional. Depois de várias tentativas de aproximação, aos poucos uma compatibilidade de temperamentos acaba se estabelecendo entre os dois.

Sem muita demora somos levadas a perceber que os sentimentos de ambos se transformam em algo além da amizade e é nesse momento que Lou descobre que Will está planejando sua eutanásia. Ao longo do filme nos deparamos com um jovem que não possui perspectiva de melhora de sua condição física, e que sofre muito com dores, além de ter de lidar com doenças oportunistas, o que torna sua rotina ainda mais penosa. A protagonista descobre que contratá-la foi a última cartada dos pais do jovem milionário para que ele desistisse de tal ideia. Observamos, então, que Lou entende que sua missão é de estimular Will a continuar vivo.

São muitas as pesquisas para executar diversas tentativas de atividades prazerosas com as quais Lou não só acha que será capaz de fazer nosso protagonista ter o mesmo prazer pela vida que tinha antes do acidente, como também se culpa pela incapacidade de não conseguir controlar todas as situações que envolvem a vida de Will e que despertariam em seu parceiro a desejada mudança de decisão. Depois de todas as tentativas, nossa protagonista, como em uma cartada final, declara-se para Willian esperando finalmente a mudança de desejo da parte dele. É nesse momento em que  somos surpreendidas por um enredo no qual o casal não termina com o famoso “juntos para sempre”. A partir desse momento, acompanhamos uma protagonista frustrada, pois seu par romântico seria um sujeito egoísta que não desejou viver por causa dela. Depois de muito sofrimento e dor, nossa protagonista aparenta aceitar a decisão de Will, finalmente compreendendo que ninguém muda ninguém. No final, a eutanásia é mantida e Lou decide passar ao lado de Will os últimos momentos

Talvez não seja muito evidente a crítica feita pela autora do livro e roteirista do filme, Jojo Moyes. A autora escreveu a continuação de Como Eu Era Antes de Você em outros dois volumes posteriores ao primeiro (“Depois De Você” e “Ainda Sou Eu”). Seria mais fácil entender o Will como um personagem egoísta que no fundo não “amou Lou de verdade” e, por isso, não mudou de ideia para viver um grande amor. Uma análise quase que automática de fazer. Mas por que nós, mulheres, acreditamos que podemos mudar outro indivíduo? O que nos faz acreditar que um sentimento só é verdadeiro se opera mudanças na vida da pessoa?

Não é difícil perceber que o papel de sujeito operador de mudanças é historicamente atribuído às mulheres na maioria das situações. São vários os filmes, novelas, livros ou até mesmo exemplos de algum conhecido que nos são apontados desde garotinhas para exemplificar uma mulher que conseguiu mudar seu parceiro romântico, uma espécie de ser superior a todas as outras com quem o indivíduo em questão havia se relacionado até então.

“Comigo vai ser diferente” – que frase conhecida, não é mesmo? “Ele não vai me trair porque gosta de mim como não gostava da ex”, comigo vai ser diferente. “Ele vai procurar ajuda psicológica e se tratar porque sabe que sem o tratamento nosso relacionamento não vai para frente”, comigo vai ser diferente. “Ele vai parar de abusar das drogas ou álcool porque comigo terá a dose certa de dedicação”, comigo vai ser diferente.  Em “Como Eu Era Antes De Você”, a ex-namorada de Will é vista como alguém egoísta e até sem caráter porque se casa com um dos amigos do jovem Willian, porém, Lou parece não se atentar aos indícios que são apresentados para ela, como a fala que  Alicia direciona para nossa protagonista no início do filme “não dá para ajudar alguém que não quer ser ajudado”. E quantas vezes queremos acreditar que as ex-namoradas eram os verdadeiros problemas, que elas eram as problemáticas, e de maneira inconsciente tentamos nos convencer que os sentimentos pela ex-companheira não eram verdadeiros como os sentimentos destinados a nós, então de
maneira inconsciente concluímos “é  natural que uma mudança de comportamento aconteça”.

Não iremos aprofundar questões pertinentes como a depressão, alcoolismo ou eutanásia, uma vez que seria impossível abordar todos esses assuntos com devida atenção em um único texto. Caras leitoras, não vamos cair na mesmice dizendo que estamos simplificando relações que são complexas apontando apenas um fator como a causa do problema. Sim, as relações são complexas e sim, os problemas entre relacionamentos geralmente não vem de um único ponto, porém, o intuito desta reflexão não é apresentar soluções milagrosas para relacionamentos, a intenção é jogar luz sobre um comportamento que é tradicionalmente apontado como intrínseco à mulher, o poder de transformar para melhor outros indivíduos, especialmente quando a situação envolve relacionamentos amorosos. Uma carga que se mostra psicologicamente muito perturbadora e que indiretamente atribui à mulher o papel de psicóloga ou, até mesmo, de mãe. A mulher transformadora é uma construção social que acabamos incorporando como um dever sem perceber.

Louisa aceitou o papel da mulher transformadora sem se questionar. Será que é possível afirmar que Will é egoísta e que não gostava dela? Ou devemos nos perguntar se o que nos resta fazer é respeitar as escolhas do outro, e se essas escolhas nos fazem bem ou não, somos nós que devemos refletir e decidir se desejamos permanecer ou não com alguém que possua determinadas características.

Nossa protagonista achou que poderia mudar a escolha de vida de alguém e a frustração de não conseguir esse feito caiu sobre ela com uma pesada carga de incapacidade. Frases como “eu posso fazer você feliz” “isso foi antes de mim” ou “não posso deixar isso acontecer” mostram o quanto normalizamos a concepção de que a mulher transformadora pode mudar um homem ou de que alguém mudar unicamente por amor, papel que a protagonista adota para si e as mulheres reais também. Ao final, aceitar que não se pode mudar ninguém foi a forma com que Louisa conseguiu lidar de maneira menos devastadora com sua experiência.

 

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