Como eu vou explicar pro meu filho que aquelas mulheres retintas como nós não são as mães daquelas crianças loiras? Como vou explicar os olhares tortos que nós recebemos desde que pisamos nesse bairro bacana? Aqui não é o meu, não é o nosso lugar. Vim para cá ver um emprego de porteiro. Estou desempregado há 11 meses. Tem gente que não gosta da palavra. Dizem que é melhor falar que estou procurando recolocação profissional. De qualquer forma, as contas seguem atrasadas.

Eu não tinha com quem deixar o menino, pois a mãe está trabalhando. Ela é empregada em um bairro como esse que agora estamos, onde todo mundo tem mania de ter carro grande. Após matutar quantos salários mínimos são necessários para comprar uma SUV, volto para meu questionamento mais urgente. Como eu vou explicar pro meu filho que as mulheres retintas que vestem branco não estão indo para o candomblé?

“Pai, porque essas mulheres que se parecem com a mamãe têm filhos que parecem bonecos?”, me pergunta o menino ao ver babás empurrando sofisticados carrinhos de bebê, provavelmente comprados nos EUA. Não sei lidar com certas questões, tenho medo de ser o responsável pela quebra de uma inocência que inevitavelmente será quebrada. Fico quieto. Não tenho nem o que chorar, pois a fonte secou há muito.

Currículo entregue, mais um. Enquanto saíamos desse outro mundo, cruzamos com uma senhorinha negra, provavelmente doméstica. Ela nos olhou sem nada dizer. Sei que ela compreendeu a minha situação. Sabemos que dificilmente seremos donos de um apartamento naqueles condomínios luxuosos. Quem sabe se eu ganhar na Mega Sena. Mas como vou jogar se falta dinheiro até para o básico?

“Pai, essa moça parece a vovó”, disse meu menino, com os olhos brilhantes. Instantaneamente, me vem à mente a semelhança entre minha esposa e sua mãe. Daí, penso na minha mãe, na minha avó, na tinha tia, na minha irmã e como nossa história se repete. Sinto um nó na alma, então abraço forte o meu menino, lhe dou um beijo na testa e, com pouco que tenho no bolso, lhe compro um saco de pipoca doce. O vendedor também é retinto. Senti saudades do meu preto velho.

Esse foi meu primeiro ato após voltar para o nosso mundo, a nossa realidade. A vida pede um pouco de doçura. Ainda faltam dez currículos para serem entregues. Ainda são 8h40 da manhã e o Brasil ainda é Brasil, pelo menos do lado de cá da ponte.

 

Roniel Felipe é jornalista, fotógrafo e autor dos livros “Negros Heróis: histórias que não estão no gibi”, “Contos Primários de um Mundo Ordinário” e “Coisas que nunca contei, mas por sorte fotografei”. Atualmente, trabalha na produção de seu segundo curta-metragem, uma história ficcional que aborda a realidade da comunidade negra LGBT diante da religião pentecostal. Mais informações sobre seus trabalhos em www.ronielfelipe.com.br e contato pelo email [email protected]