Mês do orgulho LGBTI é uma loucura de arco-íris pra todo canto, frases de efeito e a palavra PRIDE estampada em todos lugares. Todas as pocs e monas se sentindo representadas, as influencers LGBTIs devidamente pagas, cheias de jobs e recebidinhos das corporações que tanto amam a viadagem. Vendo tudo isso, a gente para e pensa: caralhos, a revolução aconteceu, a ditadura agora é gayzista, ninguém vai ser fiscal de cu alheio. Meu cu, minhas regras, tenho um cu livre! Será, babies? Será?

Hoje trago esses questionamentos que me são caros e são frutos de reflexões e temas que estão cada dia me sendo mais estimados ainda quando se trata da pauta LGBTI. Quando eu criei o podcast HQ da Vida, eu era outra pessoa que precisava canalizar todo o espírito aquariano revolucionário em algo. Comecei o podcast com a premissa de que a representatividade era importante e que apenas ocupar espaços poderia causar uma transformação social. Isso balizou minhas pautas, meus roteiros e edições. Mas eis que encontro marxistas no caminho. Isso mesmo, no meio do caminho tinha um marxista, ou melhor, eu poderia até dizer que no meio do caminho havia mulheres marxistas. Isso tem mudado minha trajetória enquanto pessoa que consome conhecimento e faz síntese disso em texto, podcast e canal no YouTube. Quando digo que havia mulheres marxistas no meu caminho é porque homens heterossexuais cisgêneros endossexuais nunca me cativaram com sua fala, liberais ou não, politizados ou não. Eu só comecei a ouvir homens marxistas depois que conheci as mulheres marxistas ou que falam sobre o assunto (lógica estranha, né?).

Mas bem, hoje preciso falar sobre alguns problemas que rondam nossa pauta LGBTI e merecem reflexão. Vou estruturar meu argumento em três tópicos que são necessários de serem pontuados e no terceiro ponto preciso me delongar mais, pois é fruto de uma reflexão muito importante sobre textos da Nancy Fraser que fiz recentemente e que versam sobre o dilema da distribuição de riquezas e como uma hiper representatividade artificial sem cidadania e justiça social voltada para o consumo pode nos levar a encruzilhadas conceituais e vazias de transformação social.

 

Tirinha com título "Orgulho". Na primeira imagem, o personagem olha para uma placa com as bandeiras do arco-íris e diz "não posso esperar para ir à parada do orgulho LGBT+", na segunda tirinha ele continua dizendo "e ver pessoas diferentes celebrando quem são", na última tirinha ele chega ao local e vê três carros com a bandeira LGBT e neles escrito "corporação". O personagem diz "oh não".

 

Dilema um: Pink Money

 

Sim, isso me causou orgulho no passado e hoje me é estranho. O dinheiro rosa é um termo usado para nomear o potencial econômico que a comunidade LGBTI tem de consumo e como o mercado evolui para atender à demanda dessa clientela.

Para um liberal de esquerda, isso está super ok, pois a visão dele é de que LGBTIs serão respeitados e terão seus direitos garantidos, já que possuem poder de consumo. Seria lindo hipoteticamente, se não fizéssemos os devidos recortes de gênero, raça/cor, sexualidade e classe. E pensando nestes pontos de recorte, basicamente poderia desenhar pra vocês que dadas as características do país, teríamos respectivamente o homem, branco, gay e de classe média sendo contemplado pelo pink money. Então, vejam bem, acessar direitos pelo consumo não está ok, tá? Não vai haver transformação social.

O que me leva ao segundo ponto. É o que a Fraser, Bhattacharya e Arruzza falam no livro “Feminismo Para os 99%”: de que adianta lutar para acessar os espaços de poder, ter poder de consumo e manter a estrutura com poucas mulheres nestes lugares? O problema está na estrutura. Peguemos essa lógica, apliquemos na pauta LGBTI e teremos os mesmos questionamentos. Quem são as pessoas que acessam alguns privilégios da sociedade? Inevitavelmente a resposta/pergunta é: “e por que são os homens gays, cisgêneros e de classe média?” O que nos leva ao tópico dois.

 

Dilema dois: cooptação/sequestro de pauta.

 

Se o dinheiro movimenta tudo, o capitalismo tudo também destrói. Em que sentido digo isso? Vou ilustrar com um exemplo pra vocês e provavelmente nunca serei patrocinada pelo Burger King.

Em 2018, o Burger King, em homenagem à parada do orgulho LGBTI, nomeou uma filial na Paulista com os nomes Burger Gay, Burger Queen, Burger Trans e Burger Bi, com vários outros materiais promocionais e até mesmo milk-shake de unicórnio. Este ano foi uma maravilha também, vários influencers ainda celebrando o amor (nem vou problematizar isso) com a Burguer King. Lindo, né? Viva a diversidade! Só que não! Essa mesma empresa é a que foi obrigada a pagar uma indenização de 24 mil reais por cometer racismo com uma mulher e seu filho de 12 anos. Vocês conseguem ver a incoerência? Estou citando apenas este caso em específico, pois já houve até mesmo uma decisão judicial. O problema da lógica mercadológica é que cria uma falsa sensação de inclusão, porém é excludente ao começar pela lógica do consumo em um país com tamanhas desigualdades sociais.

Outro ponto é que o sequestro da pauta ocorre do momento em que se pasteurizam discursos sem reflexões, fazem debates rasos sem se aprofundar ou às vezes nos deparamos com casos como este. Empresas que são pró-LGBTI e têm casos de assédio, de trabalho análogo ao escravo, de trabalho precarizado, que possuem funcionários racistas e por aí vai. Sequestram a pauta, tudo vira mercadoria e o objetivo é sempre o lucro. Por isso as incoerências são gigantes quando se liga o sentido aranha poc da criticidade.

 

Dilema três: representatividade

 

Para este dilema eu confesso que ainda me engatinho nas leituras, mas já consigo fazer sínteses de modo que futuramente talvez possa abandoná-las ou reestruturá-las melhor. Quem nunca viu uma treta entre grupos identitários na busca de reconhecimento versus grupos socialistas em busca de redistribuição de renda? Se você não viu, sente aí que vou explicar direitinho.

Vamos destrinchar este dilema de um jeito que eu diria que seria raso se você não catar as recomendações de leitura deste texto. Por isso peço que você leia Nancy Fraser em seus dois textos que versam bem sobre a temática: “Reconhecimento sem ética? “ e “Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era pós-socialista”, e o trio Fraser, Bhattacharya e Arruzza com o livro “Feminismo para os 99%”. A melhor síntese que tenho sobre isso é que existe uma esquerda liberal cooptando a pauta, usando o discurso que “representatividade importa” como a única ou a principal forma de ser catalisadora de transformações sociais. Você já se perguntou se representatividade importa hoje?

Bem, eu já respondi a essa pergunta no passado e à época eu cria que sim, e adicionava a frase: “basta ter qualidade”. Porém, hoje eu não seria tão certeiro e devemos nos aprofundar mais nesta temática. Temos que perceber que a busca pelo reconhecimento dos grupos de pautas anti-opressão (feministas, LGBTI, movimento negro) foi impulsionada nos últimos anos, porém partindo da lógica liberal, ou melhor, sendo sequestrada por eles.

Do outro lado, tem o outro grupo que se posiciona contra este tipo de proposição de solução, gerando a dicotomia que Fraser destrincha muito bem em seus textos. É um dilema político do século XXI, pois temos o grupo que fala da importância de redistribuição de renda como uma solução para os problemas da sociedade. E do outro lado existe o grupo que aposta apenas no reconhecimento como forma de trazer justiça social. Para estes dois dilemas sociais Fraser nos diz que temos os “remédios” de cada lado, que atuam de forma antagônica. De forma bem didática, ela mostra como o problema da luta de classes é extremamente importante e não deve ser renegado, e propõe estratégias para que grupos LGBTI, feministas e negros possam também serem inseridos nessas lutas sem anular alguns pontos que seriam contraditórios e que merecem reflexão, como questões de abolição de gênero ou a temática sobre raça interseccionando com classe (por isso vocês precisam ler os textos sugeridos).

Como disse, as soluções de identitários são para Fraser os remédios afirmativos e o problema pontuado por ela é que as soluções propostas se baseiam no fato de liberais apostarem no aumento do poder de consumo do grupo como forma de emancipação, mas mantendo a estrutura econômico-política existente; ao passo que os remédios transformativos, historicamente associados ao socialismo, agem de forma a transformar a estrutura econômico-política, melhorando as condições de todos. O que pesa em algumas propostas são pontos em que a solução de um remédio pode ser a anulação de proposta de outro. Como assim, Dimitra?

Pense aqui comigo, vamos falar de gays e de uma identidade gay. O que a gente percebe nessa lógica, ou como diria Fraser, nesse remédio afirmativo de cunho liberal, é que a política subjacente é reforçar a diferenciação entre gays e os heterossexuais, apostando no empoderamento do grupo a partir do consumo. Se pensarmos, por outro lado, na política queer, que também é um remédio transformativo, já podemos perceber que o objetivo não é reforçar a identidade gay e sim romper com as estruturas que nos colocam em grupos antagônicos homo/hétero e a partir daí promover novos reagrupamentos que não sejam opressivos. Conseguem captar a linha de raciocínio? O mesmo se vê na dicotomia entre pauta do casamento homoafetivo. Pra que validar essa estrutura chamada casamento e nos encaixarmos nela? Foda-se o casamento. Eu sou casada e lógico que ajuda em questões práticas do dia a dia, como plano de saúde, herança etc. Mas vocês conseguem perceber que essas soluções rotineiras estão mais ancoradas em um grupo? A classe média que tem plano, que tem propriedade privada.

Em um trecho dos textos que indiquei aqui, vale também uma reflexão colocada por Fraser:

O resultado é marcar a classe mais desprivilegiada como inerentemente deficiente e insaciável, sempre necessitando mais e mais. Com o tempo essa classe pode mesmo aparecer como privilegiada, recebedora de tratamento especial e generosidade imerecida. Assim, uma abordagem voltada para compensar injustiças de distribuição pode acabar criando injustiças de reconhecimento (FRASER, 2006, p.238).

Ora, vamos colocar isso no campo prático da nossa realidade brasileira: foram criados remédios que não solucionaram por completo nossos problemas sociais. Recentemente tivemos a criminalização da LGBTfobia, a despeito de todas as ressalvas colocadas pelos abolicionistas, minimalistas penais e antipunitivistas, fazendo recorte de classe e raça/cor. Temos também leis para combater a violência contra a mulher, temos as políticas de cotas, temos bolsa-família, lei antirracismo e por aí vai. Todos esses remédios foram necessários para reparações e correções de desigualdades históricas, porém a estrutura ainda está intacta e funcionando mais do que nunca, ainda operando e reproduzindo as desigualdades contra as quais lutamos diariamente. Diante disso, é preciso que reflitamos sobre rumos e escolhas que a pauta que a gente defende está tomando e nesse texto, eu, como poc cisgênera drag queen, fico reflexiva com as escolhas que temos apoiado.

Enfim, querides, se chegaram até aqui, pensem sempre onde estamos sendo cooptados, nunca aposte 100% em representatividade, desconfie de grandes corporações, interseccione suas lutas, sejam coerentes nas práticas diárias e nas pautas que defendem. É isso!

Que junho seja mês de orgulho das pocs, das manas, das monas, mas não deixemos que nos sequestrem pontos que nos são tão caros e fruto de tantas lutas de pessoas que morreram para termos mais dignidade e direitos! E lembrem: foquem nas mulheres maravilhosas e marxistas que estão por aí. Elas irão fazer a revolução!

Finalizo com a frase da Angela Davis, feminista negra marxista: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.

 

Dimitra Vulcana é Drag, Doutora em ciências da saúde, professora federal, podcaster no HQ da vida e YouTuber no canal Doutora Drag.

 

 

Referências:

FRASER, Nancy. Reconhecimento sem ética?. Lua Nova, São Paulo, v. 70, p. 101–138, 2007.

FRASER, Nancy. Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 14/15, p. 231–239, 2006.

ARUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%. Boitempo: São Paulo, 2019.

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