Recentemente me deparei com um tweet que me deixou, para dizer o mínimo, deslumbrada mais uma vez com a incrível capacidade masculina de auto exaltação. Tratava-se de um produtor de podcasts que, aparentemente, ao se deparar com algumas críticas sobre seu trabalho proclama que somente quem jamais havia visto uma novela, lido um livro de mais de 100 páginas, ou acompanhado um seriado de várias temporadas poderia reclamar do tamanho de seus episódios. Ele segue, então em uma thread explicando seus motivos para o que chamaram de “muita enrolação”. Aqui cabe uma primeira ressalva, eu não acompanho tal série de podcasts, que pelo que sei é muito interessante e está fazendo bastante sucesso, porém esta não é a questão aqui, tampouco o é este formato midiático, o fato é que para este Dias Gomes do podcast, não cabem críticas em relação a seu talento para a edição. O Tolkien do podcast parece acreditar que ler qualquer livro de 200 páginas (o que constitui um livro pequeno) é um comprometimento maior do que ouvir horas e mais horas de sua obra.

Embora egocentrismo e vaidade exacerbada e não sejam características exclusivamente dos homens, há de se convir que a afirmação tão ególatra e confiante é uma construção tipicamente masculina. A validação parece tão mais fácil para eles. E, na verdade, por que não seria? Muito já se falou sobre o quão pouco os homens precisam fazer, para serem considerados “superlativos”. O paizão que leva os filhos para passear a cada 2 finais de semana, ou aquele que “ajuda” a cuidar do seu próprio bebê, são exemplos clássicos, mas a questão não começa na paternidade, e nem se encerra aí. Alguns anos atrás a Risqué levou uma invertida pública de mulheres revoltadas com sua nova linha de esmalte “Homens que amamos”, cujos esmaltes exaltavam homens por fazer literalmente o mínimo “Zeca chamou pra sair”, “Fê mandou mensagem”, entre outros.

Há alguns anos Emma Watson revelou que tinha síndrome de impostora, que é algo comum especialmente entre mulheres e outras pessoas bem sucedidas que fazem parte de grupos minoritários. No entanto, este caso específico me chama a atenção porque Emma Watson é famosa desde os 11 anos de idade, ao conseguir o papel da personagem mais reverenciada da série de livros mais popular das últimas décadas, e percebida por muitos como a encarnação das melhores qualidades desta personagem, além de ser muito bonita e talentosa. Eu não sei como é a vida e família de Emma, mas imagine o quanto tem que ser forte este sentimento de “ser uma fraude” para assolar uma pessoa que é idolatrada desde os dez anos de idade? Mas o que tem a ver as dúvidas de auto-afirmação de Emma Watson, com o ego e a auto exaltação masculina? Afinal não é culpa da Shonda Rhimes dos podcasts e nem de outros homens que confiam em si mesmos se algumas mulheres não sentem isso. Não, de fato não é. Exceto que este é um dispositivo de múltiplas facetas.

Não é infrequente que para o que vou chamar de “facilidade em se achar o máximo” existir precisa ser em detrimento a mulheres. A copa de mundo de futebol feminino foi um prato cheio para as mais diversas comparações e tentativas de justificar realidades injustificáveis. Um tema que veio a tona é a disparidade na remuneração dos atletas do masculino e feminino. Li uma matéria sobre a entrevista de um representante da Adidas que disse não ser realista que se pague o mesmo em patrocínio a ambas as categorias, uma vez que a diferença na popularidade e visibilidade dos atletas homens e mulheres era enorme. Dentro desta lógica capitalista liberal, comentei online que não se pode tratar como 8 ou 80. Uma coisa é Marta não dar o mesmo retorno publicitário que Neymar, outra é pagarem menos do que, digamos a “um Borja” para ela. Para quem não conhece, Borja é um jogador colombiano que atua pelo Palmeiras, ele foi trazido por bastante dinheiro e nunca correspondeu às expectativas, e embora não seja mau jogador, é frequentemente criticado pela torcida. Ou seja, é um jogador mediano que usei somente para ilustrar a um ponto de vista – como poderia ter usado vários outros. Eis que um cidadão responde que Marta não “vale nem tanto quanto um Borja”, pois quantas crianças gostariam de uma camisa da Marta, cujo time ao qual defende nem saberíamos sem procurar antes. Meu argumento aqui é que o mesmo dispositivo que torna tão mais fácil que homens tenham tanta segurança, nem sempre realista, sobre seu valor, e o valor de outros homens, é o que faz com que para muitas pessoas qualquer homem médio seja melhor do que a mais sensacional das mulheres. A ideia de que um jogador qualquer, estrangeiro ainda, é mais valioso do que a melhor jogadora do mundo, e brasileira, só é possível em um universo em que “ser homem” é a única característica necessária.

Isto me leva a mais um espetáculo patético recente do presidente, quando “desafiou” o governador Dória a fazer flexões em uma visita a PM paulista. Exceto que Bolsonaro não sabe, ou não consegue, fazer flexões, ele já havia sido ridicularizado outras vezes em que tentou fazer isso – em 2017, portanto antes do atentado em Juiz de fora. Pensando sobre isso com alguns amigos, levantou-se a hipótese de mais um ato de desleixo do presidente, que simplesmente não se importaria com o patético, assim como a vestimenta estapafúrdia ou o pão com leite condensado, ou a recente exaltação de bijuterias de nióbio. Eu acho que existem muitos motivos para o uso da “tosquice” como estética e comportamento por parte deste governo, porém não creio que macular seu maior motivo de orgulho, sua virilidade, seja um deles. Bolsonaro repete o esquete de flexões quando lhe dá na telha, pois nem passa na cabeça dele que ele está fazendo isso errado.

Ano passado o ator Pedro Cardoso fez o que penso ser a crítica mais generosa que pode ser feita quanto a Bolsonaro, mas nem por isso deixa de ser correta: “Bolsonaro é um iludido com sua própria virilidade.” A limitada ideia de masculinidade de Bolsonaro e seus asseclas está baseada quase que exclusivamente em sinais físicos de “macheza”, e no distanciamento daquilo que o aproxime de características que considera femininas, e portanto de fraqueza – creio que não precise aqui falar o quanto o presidente odeia e despreza mulheres, já que o próprio faz questão de reforçar isto toda semana. Bolsonaro e homens como ele acreditam serem verdadeiros Rambos. Fortes, heroicos, com um fuzil na mão poderiam pôr ordem no mundo – que está entregue ao caos devido a falta de valor dado a esta “macheza”. Partindo para a realidade, o presidente não consegue fazer uma flexão, e quando tentou defender-se de um ladrão, teve sua arma roubada. Ainda que se possa dizer que o presidente já é um homem de certa idade, tenho certeza que se ele em algum momento da vida ele tivesse exibido algum sinal de proeza física, fosse um exímio atirador durante seus anos no exército, fosse ótimo em algum esporte “de macho”, por exemplo, sua máquina publicitária já teria feito muita propaganda disso, afinal este é o homem que se gaba da própria virilidade por ter gerado 4 filhos homens. Não se trata de dizer que homens que sejam de fato fortes fisicamente tenham direito de fazer ou dizer as coisas que o presidente faz e diz, mas que se você vai basear toda sua escala de valor simbólico em uma coisa. É melhor que você seja realmente muito bom nisto.

É provável que a falta de senso de ridículo de Bolsonaro seja resultado de diversas coisas, porém, sustento que parte dela está em uma complacência cultural a qual homens frequentemente usufruem, em que “ser homem”, e o que isso quer dizer para cada um, parece ser o suficiente. Obviamente, é necessária uma derradeira ressalva, para lembrar que “nem todo homem é ou faz isso…”. E claramente existem diferentes graus e níveis – como procuro demonstrar no texto. Ter “confiança” em sua própria capacidade não é um problema, longe disso, o homem que confia em sua capacidade não é necessariamente aquele que precisa rebaixar as mulheres para isso, e embora eu acredite que sempre vale a pena observar o mundo ao redor para evitar passar vergonha, precisamos exigir menos de mulheres, criar meninas para terem mais segurança de si. Ao mesmo tempo, não se trata de minar a confiança masculina, mas de não tratar a masculinidade ou “virilidade” como um prêmio em si só. De modificar a visão cultural em que parece se esperar tão pouco de homens, que frequentemente o mínimo – de esforço, de decência, de capacidade – já é visto como algo a ser exaltado. De mostrar aos homens que para merecer mesmo palmas é preciso muito mais do que “flexões” com o pescoço.

 

LUCIA LONER COUTINHO.

Sou professora e doutora em comunicação, fiz pesquisa de doutorado sobre séries de TV, e trabalho com pesquisa em mídia cultura e identidades.

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