O que está em pauta no Brasil nos últimos dias é o coronavírus. Não por menos. No dia 11 de março, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou pandemia de coronavírus, após serem registrados 118 mil casos em 141 países. No Brasil, são 234 casos confirmados, número que cresce diariamente.

Diversas medidas estão sendo tomadas para conter a propagação do vírus, visto o enorme potencial de contaminação verificado em outros países. Escolas estão sendo fechadas, a recomendação é de isolamento e que se evitem aglomerações, a população está sendo conscientizada sobre hábitos de higiene, entre outras medidas. Ainda, há um esforço para entender o impacto que o coronavírus terá em um país economicamente frágil diante das medidas de austeridade e de um sistema de saúde que vem sendo paulatinamente esquecido e desinvestido pelo teto de gastos.

Além dessas e outras questões relevantes, é preciso também pensarmos no impacto que uma pandemia pode representar na vida das mulheres brasileiras.

Não se trata de afirmar que as mulheres estão dentro do grupo com maior preocupação de contágio  –  idosos, diabéticos, hipertensos e pessoas com insuficiência renal ou doença respiratória crônica formam o grupo dos mais vulneráveis ao vírus. Trata-se de entender como a questão de gênero se encaixa na dinâmica de trabalho, nos permitindo analisar particularidades do contexto das relações sociais no Brasil. No caso de uma pandemia, entender como a divisão sexual do trabalho pode influenciar a dinâmica do contágio para mulheres.

Um vírus não vê o gênero de quem está pela frente, mas existem questões que afetam homens e mulheres de formas diferentes. Por exemplo, mais homens possuem o hábito de fumar do que mulheres. Isso tem um impacto no número de casos que são potencialmente mais graves, uma vez que fumantes têm maiores chances de ter complicações se forem infectados pelo novo coronavírus. Outras questões, no entanto, fazem com que mulheres tenham maiores chances de sofrer o impacto de uma pandemia. É este enfoque de gênero que queremos trazer aqui.

 

Cuidado é uma função relegada às mulheres

 

São as mulheres as maiores responsáveis pelos cuidados da casa, das crianças, dos enfermos. A diferenciação do trabalho desigual entre homens e mulheres nos afazeres de cuidado não é uma distribuição centrada em uma concepção natural, como se a mulher dispusesse de uma habilidade intrínseca a esse tipo de trabalho. Isso é resultado de um processo histórico de divisão sexual do trabalho.

Segundo relatório da Oxfam, as mulheres são responsáveis por 75% de todo trabalho de cuidado não remunerado no mundo. Portanto, serão as mulheres as maiores responsáveis pelo cuidado de familiares doentes e serão elas que terão  maior risco de infecção intrafamiliar. No caso do Ebola, por exemplo, as mulheres africanas foram mais infectadas, não pelo vírus ter alguma disposição ao gênero, mas porque a transmissão ocorreu em maior número dentro de casa do que em hospitais.

Além das mulheres que tem uma carga de cuidado em casa, as que são profissionais de saúde correm também riscos. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), as mulheres compõem 67% da força de trabalho do setor de saúde e assistência social nos 104 países analisados. No Brasil, uma pesquisa publicada na Revista Divulgação em Saúde para Debate demonstra números parecidos: “A participação das mulheres chega a quase 70% do total, sendo 62% da força de trabalho das categorias profissionais de nível superior, e 74% nos estratos profissionais de níveis médio e elementar”.

Segundo a pesquisa, esses números sofrem grandes variações conforme a especialização. Mulheres dominam a área de nutrição (95,3%), por exemplo, mas ainda são minoria de médicos (35,94%). Com relação aos profissionais que estarão na frente de batalha contra o coronavírus, as mulheres serão a maioria dos enfermeiros (90%) e dos profissionais de nível técnico e auxiliares.

Segundo a Dra. Celine Gounder, em entrevista ao New York Times, o nível de exposição das enfermeiras é mais alto, inclusive comparado a médicos, uma vez que “elas estão muito mais envolvidas no atendimento íntimo dos pacientes. São elas que tiram sangue, coletam espécimes”, entre outras atividades que demandam maior contato com as pessoas infectadas. No entanto, não serão as únicas que profissionalmente sentirão grandes impactos com a pandemia do coronavírus.

 

Mães e mercado de trabalho

 

Se as mulheres acumulam jornada dupla e tripla de trabalho com afazeres domésticos e cuidado dos filhos, as recentes medidas impostas pelos governos estaduais e municipais de fechamento de escolas e universidades trazem a pergunta que toda mãe se fez: com quem irei deixar meus filhos?

A medida é considerada acertada por grande parte das pessoas, mas também traz algumas preocupações. Isso porquê apesar das crianças não estarem dentro do grupo de maior risco de casos graves de coronavírus, podem acabar transmitindo a doença. E o problema é que muitas ficarão em casa aos cuidados dos avós – esses, sim, dentro do grupo de risco de maior letalidade. No entanto, o que se espera é que a medida freie o pico de contaminação do vírus, poupando o sistema de saúde de uma sobrecarga que ocasione mais mortes.

O fato é que mesmo sendo acertada a decisão, o impacto será sentido especialmente às mulheres. Segundo reportagem veiculada pelo Fantástico, essa medida não está sendo tomada na Argentina justamente porque os pais (leia-se: as mães) não tem onde deixar as crianças enquanto trabalham. O mesmo programa mostrou como no Brasil a medida pode ser atenuada: algumas empresas estão liberando seus funcionários para trabalhar em home-office. No entanto, o programa não mostra como ficarão as mulheres das empresas que não dão essa opção.

Afinal, as mulheres poderão levar seus filhos para o trabalho? As que tiverem que faltar para cuidar dos filhos correrão o risco de serem demitidas? Elas receberão nos dias de falta? Haverá algum tipo de incentivo dos governos para empresas que liberarem suas funcionárias para cuidar dos filhos? Se 30% das mulheres deixam o mercado de trabalho para cuidar dos filhos (os homens, esse número é de 7%), quantas mulheres sairão definitivamente do mercado no atual contexto de pandemia?

Deve ser irrelevante dizer, nesse ponto, que não podemos contar com a benevolência de empresas para conter uma pandemia ou trazer soluções. Ademais, o que farão as mulheres que não tem sequer um emprego formal?

 

Trabalhadoras informais

 

Apenas algumas semanas atrás um debate de extrema de relevância tomou conta do Twitter a partir do anúncio da startup Parafuzo. A empresa, devidamente criticada por explorar a mão de obra de uma parcela da população já severamente marginalizada, oferecia uma “faxina agendada” pelo mísero valor de R$ 19,90. Vale ressaltar que as empregadas domésticas além de sofrerem com a informalidade dos seus serviços – 70% não tem carteira assinada -, sofrem também com a falta de acesso ao trabalho formal pelo racismo estrutural que relega o trabalho doméstico a uma hereditariedade entre mulheres negras.

Diante do coronavírus, muitos usuários do Twitter também mostraram preocupação com as empregadas domésticas e diaristas. Em Feira de Santana, na Bahia, o segundo caso confirmado de coronavírus foi de uma mulher de 42 anos, empregada doméstica que contraiu o vírus de sua patroa. A preocupação é, portanto, primeiramente em relação às condições de trabalho que essas mulheres enfrentam – diante uma posição subalterna a uma classe dominante branca -, além dos efeitos econômicos que poderão sofrer.

 

Segundo o levantamento do IBGE (2019), as mulheres estão mais sujeitas à informalidade do que os homens.  “Essa desigualdade reflete tanto a maior participação dos homens na força de trabalho, quanto as maiores dificuldades que as mulheres enfrentam ao ingressarem e para permanecerem ocupadas. Com efeito, as mulheres estão desocupadas em maior proporção, têm menores rendimentos e estão mais sujeitas à informalidade do que os homens”, afirma o IBGE.

Portanto, é inescapável que, diante das recomendações de quarentena e isolamento, muitas mulheres fiquem sem oportunidade de serviço, comprometendo sua renda.

A resposta dos usuários do Twitter é solidária e demonstra que algumas pessoas estão individualmente comprometidas em atenuar os efeitos econômicos que o coronavírus terá para essas mulheres. No entanto, é importante cobrar do poder público medidas nesse sentido, como seria o caso de oferecer assistência básica durante o período de isolamento.

Precisamos cuidar das mulheres que formam a força de trabalho mais precarizada no Brasil. São as mulheres negras que estão na base dessa pirâmide e podem sentir os efeitos mais nefastos do coronavírus, seja por estarem em uma posição direta de contágio ou por sentirem mais gravemente os efeitos econômicos da pandemia. É preciso cobrar do governo, com urgência, não apenas medidas de investimento em saúde pública, mas também medidas de assistência econômica às mulheres trabalhadoras, que já formam a parcela mais precarizada de trabalho.

 

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Atualização de informações

O segundo caso de morte em virtude de coronavírus foi de uma empregada doméstica de 63 anos, residente de Miguel Pereira, que foi infectada por sua patroa que havia chegado recentemente da Itália. A informação foi confirmada pela Prefeitura de Miguel Pereira.

 

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