Um conceito central, quando se trata de violência simbólica, é o conceito de poder simbólico cunhado pelo sociólogo francês Bourdieu. Há, segundo o sociólogo, um poder que se deixa ver menos ou que é até mesmo invisível. Esse poder, que se exerce pela ausência de importância dada a sua existência, poder ignorado, que fundamenta e movimenta uma série de outros poderes e atos. O poder que está por trás, escondido nas entrelinhas e que é cunhado com este propósito. Quando reconhecido, estamos diante do poder simbólico, denomina Bourdieu (BOURDIEU, 1989, p.7). “O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 1989, p. 7).

Mas através de quê e de que forma esse poder se manifesta? Quais os mecanismos pelos quais funciona? Bourdieu assinala que é através do que ele chama de sistemas simbólicos, a língua, a arte, a religião, que o poder simbólico se edifica e se revela. A língua como objeto […] deste estudo é então para o teórico, enquanto sistema simbólico, uma estrutura estruturante(sic), pois que se configura como instrumento de conhecimento e construção do mundo dos objetos […], delineando seu caráter socialmente determinado e arbitrário; e também uma estrutura estruturada(sic), dizendo respeito assim, ao caráter imanente, de sistema estruturado como pensa Saussure (BOURDIEU, 1989, p. 7).

Assim, o poder simbólico através de sistemas simbólicos, a língua, a arte, constrói a realidade com base na homogeneidade temporal, espacial, etc., e conforme uma ordem epistemológica, chamada por Bourdieu de ordem gnoseológica, que vai ditar essa homogeneidade e os sentidos do mundo a partir da validade e dos limites desse conhecimento, tornando possível a concordância entre os sujeitos. Outro meio pelo qual o poder simbólico funciona está nos símbolos, que são, para o sociólogo, instrumentos de integração social. É a partir dos símbolos que uma determinada comunidade linguística, artística, religiosa, entra em consenso acerca dos sentidos e representações que circulam neste meio e que contribuem para a reafirmação e reprodução de paradigmas, de ideias e de uma ordem social (BOURDIEU, 1989, p. 10). Desta forma, os símbolos são parte do modo como representamos a realidade e o mundo, o meio pelo qual uma cultura e seus valores se expressam e se reafirmam através dos sistemas simbólicos.

Bourdieu explica que os sistemas simbólicos são responsáveis por produções simbólicas, que funcionam como instrumentos de dominação. Com base em Marx, Bourdieu elucida que tais produções relacionam-se com os interesses da classe dominante e privilegiada:

A cultura dominante contribui para a integração real da classe dominante […]; para a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, portanto, à desmobilização (falsa consciência) das classes dominadas; para a legitimação da ordem estabelecida por meio do estabelecimento das distinções (hierarquias) e para a legitimação dessas distinções (BOURDIEU, 1989, p. 10).

Os sistemas simbólicos cumprem, assim, sua função social e política, a partir das suas produções, pelo acúmulo de poder material e simbólico da classe detentora desses poderes.  

É assim que os sistemas simbólicos cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre a outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a domesticação dos dominados (BOURDIEU, 1989, p. 11).

Vale ressaltar que não só a classe privilegiada, mas as demais classes coexistem em constante luta hegemônica, em busca de monopólio dos espaços e meios de produção simbólica, bem como em busca do próprio poder simbólico e também da violência simbólica, pela qual se impõe e se inculca instrumentos de conhecimento da realidade social (BOURDIEU, 1989, p. 11).

 

A violência simbólica, a violência de gênero e a violência simbólica de gênero

 

Segundo a professora Cecília Sardenberg, membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM/UFBA, “o mundo simbólico aparece como um grande quebra-cabeça a ser decifrado” (SARDENBERG, 2011, p. 2) e é nesse mundo simbólico que a violência simbólica se localiza e se manifesta, através de toda uma produção simbólica, via linguagem, arte, religião e outros sistemas simbólicos, que reforçam relações assimétricas e hegemônicas, desqualificações, preconceitos e violências de todo tipo. De acordo com Sardenberg, a violência simbólica se “infiltra por toda a nossa cultura, legitimando os outros tipos de violência” (SARDENBERG, 2011, p. 1). Roger Chartier (1995) apud Soihet (2008, p. 198) coloca que:

[…] retomando a tese de Bourdieu, afirma que a construção da identidade feminina teria se pautado na interiorização pelas mulheres das normas enunciadas pelos discursos masculinos; o que corresponderia a uma violência simbólica que supõe a adesão dos dominados às categorias que embasam sua dominação. Assim, definir a submissão imposta às mulheres como uma violência simbólica ajuda a compreender como a relação de dominação – que é uma relação histórica, cultural e linguisticamente construída – é sempre afirmada como uma diferença de ordem natural, radical, irredutível, universal (CHARTIER, 1995, p. 40-44 apud SOIHET, 2008, p. 198).

Em relação à violência de gênero, Sardenberg (2011) comenta:

Por “violência de gênero”, refiro-me a toda e qualquer forma de agressão ou constrangimento físico, moral, psicológico, emocional, institucional, cultural ou patrimonial, que tenha por base a organização social dos sexos e que seja impetrada contra determinados indivíduos, explícita ou implicitamente, devido à sua condição de sexo ou orientação sexual (SARDENBERG, 2011, p. 1).

Sardenberg coloca que tanto mulheres quanto homens podem ser alvos da violência de gênero – e também numa perspectiva mais ampla outros gêneros além desse binarismo – não importando suas preferências sexuais, porém complementa afirmando que, devido à ordem de gênero patriarcal regente em nossa sociedade, que, segundo a autora, está “inscrita e perpetrada nas nossas instituições sociais, nos nossos sistemas de crenças e valores e no nosso universo simbólico” (SARDENBERG, 2011, p. 2), são as mulheres que mais estão expostas a esse tipo de violência:

Contudo, em virtude da ordem de gênero patriarcal, ‘machista’, dominante em nossa sociedade, são, porém, as mulheres e, em menor número, os homossexuais, que se vêem mais comumente na situação de objetos/vítimas desse tipo de violência (SARDENBERG, 2011, p. 1).

As violências física, psicológica, sexual, simbólica etc., praticadas contra o gênero mulher, se configuram, portanto, como formas da violência de gênero contra a mulher. Assim, retomando a ideia de violência simbólica por Sardenberg, como aquela que se infiltra por toda nossa cultura e que está na base das outras violências, e sendo ela fundamentada pelo poder simbólico, já discutido anteriormente, que se quer invisível e reforçado pelos que exercem e pelos que estão (in)conscientemente sujeitos a ela, dirigidas à mulher, delineia-se a então violência simbólica de gênero contra a mulher:

De fato, a violência de gênero se expressa com força nas nossas instituições sociais (falamos então de violência institucional de gênero) e, de maneira mais sutil, embora não menos constrangedora, na nossa vida cultural, nos atacando (ou mesmo nos bombardeando) por todos os lados, sem que tenhamos plena consciência disso. Diariamente, ouvimos piadinhas, canções, poemas, ou vemo-nos diante de contos, novelas, comerciais, anúncios, ou mesmo livros didáticos (ditos científicos!), de toda uma produção cultural que dissemina imagens e representações degradantes, ou que, de uma forma ou de outra, nos diminuem enquanto mulheres. Essas imagens acabam sendo interiorizadas por nós (até mesmo as feministas “de carteirinha”), muitas vezes sem que nos demos conta disso. Elas contribuem sobremaneira na construção de nossas identidades/subjetividades, diminuindo, inclusive, nossa auto-estima.  Isso tudo se constitui no que chamamos de violência simbólica de gênero, uma forma de violência que é, indubitavelmente, uma das violências de gênero mais difíceis de detectarmos, analisarmos e, por isso mesmo, combatermos (SARDENBERG, 2011, p. 2).

A violência simbólica é, portanto, a mola propulsora de todas as outras violências. É esta violência invisível, sutil e ainda mais perigosa, propagada todos os dias nos noticiários, propagandas, bem como em produções artísticas e culturais.

Neila Santos Costa é bacharela em Letras pela UFBA, mestranda em Língua em Cultura também pela Universidade Federal da Bahia. Sua pesquisa abrange a questão da violência contra mulheres a partir dos debates e discussões teóricas empreendidos pelos estudos discursivos, estudos culturais, estudos de gênero e linguística aplicada crítica.  Escreve poemas e pinta quando pode. 

Referências:

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S.A, 1989.

SARDENBERG, C. M. B. A violência simbólica de gênero e a lei “antibaixaria” na Bahia. OBSERVE: NEIM/UFBA, 2011.

SARDENBERG, C. M. B.; MACEDO M. S. Relações de gênero: uma breve introdução ao tema. In: Costa, A. A. A.; Rodrigues, A. T.; Vanin, I. M (orgs.). Ensino e gênero: perspectivas transversais. Salvador: NEIM/UFBA, 2011. p.33-48.

SOIHET, R. Mulheres investindo contra o feminismo: resguardando privilégios ou manifestação de violência simbólica? In: Estudos de Sociologia, Araraquara, v.13, n.24, p.191-207, 2008.

Compartilhe...