“O estupro pode ser cometido contra todo tipo de pessoa… é punido com maior ou menor rigor dependendo da qualidade da vítima” [1]. Essa frase do jurista Pierre-François Muyart de Vouglans é de 1757. Poderia ser de 2019. Ainda corrigiria: o estupro só é assim considerado dependendo da qualidade da vítima. Mas o que isso quer dizer?

Nem sempre o fato de uma pessoa ter infringido uma regra significa que a sociedade irá reagir como isso tivesse acontecido. As leis não são aplicadas de forma igual à todos, apesar de assim estar disposto na legislação. É o que conclui Becker ao estudar a sociologia do desvio: “o grau que um ato será tratado como desviante depende também de quem o comete e de quem se sente prejudicado por ele. Regras tendem a ser aplicadas mais a algumas pessoas que a outras” [2].

Quando ocorre um estupro, o que menos importa é o ato em si. O que está posto para julgamento são os sujeitos envolvidos: vítima e autor. Assim, o crime é considerado crime dependendo do status dos envolvidos. Portanto, se o autor for rico, com prestígio social, preferencialmente branco, ele já está a meio caminho andado de uma absolvição. Se a vítima for uma prostituta, uma mulher negra, uma mulher trans, uma garota com vida sexual ativa que compartilha nudes, seu depoimento é desacreditado, ainda que esteja falando a verdade. De Cosby a Weinstein, ancorados pelo seu prestígio social, homens podem passar anos assediando e estuprando mulheres, uma vez que suas reputações os colocam a cima de qualquer suspeita.

Esse tipo de julgamento é respaldado pelo machismo institucional, presente nos julgamentos sociais, mas também no judiciário e nas leis. No Brasil, a noção de honra de desonra permeou nossa legislação penal desde o Código Filipino, colocando o julgamento moral a respeito das vítimas intrinsecamente ligados ao próprio tipo penal. Por exemplo, prostitutas – exemplo típico de mulheres desonradas – não tinham o direito de não serem estupradas. O Código Penal do Império, por sua vez, condicionava o estupro a vítima ser uma “mulher honesta”. Ou seja, para se provar um estupro e, principalmente, para se absolver um acusado não era necessário provar que o ato não ocorreu, mas que a vítima não era uma “mulher honesta”. Para tanto, todo o passado da vítima era revirado, e inúmeros julgamentos morais eram feitos com relação à vida sexual da mulher. Isso era, inclusive, uma estratégia dos advogados de defesa do acusado. Alguma semelhança com o que vemos atualmente? Apesar desses dispositivos não estarem na nossa legislação atual, existe uma herança desse tipo de conduta e pensamento.

 

E o Neymar?

 

O caso do Neymar reacendeu esse debate nas redes sociais. Se é que se pode se chamar de debate. O que vimos majoritariamente foram acusações contra a vítima: piranha, maria chuteira, interesseira. Ao Neymar, os comentários giravam em torno do mito do “menino sendo extorquido”.

Assim que a acusação de estupro veio à tona, o pai do Neymar foi ao programa do Datena controlar a narrativa em torno do caso dizendo que o filho estava sendo vítima de extorsão. Além disso, o apresentador divulgou o nome da vítima – que estava em sigilo pelo processo correr em segredo de justiça – e fez a defesa do jogador, apelando para sua imagem de “menino”.

No mesmo dia, Neymar publica um vídeo no Instagram onde se declara inocente e expõe as conversas que mantinha com a mulher no WhatsApp, segundo ele, como “prova” de que não havia cometido o crime. O vídeo expunha fotos íntimas da moça sem o seu consentimento – o que, por si só, é crime – e conversas apimentadas entre os dois.

O vídeo exibido para seus milhões de seguidores não provava, de fato, que o estupro não ocorreu. Não é porque a menina manda nude, viaja para ver o cara ou aceita presentes que ela não pode ter sido estuprada. Ela pode ter tido toda a vontade do mundo de manter relações sexuais com ele, mas em algum momento disse “não” e os limites de um sexo consensual foram rompidos.  No entanto, não é isso que importa. A percepção social para a ocorrência ou não do crime depende e muito da validação social do status da vítima. No caso, ao mostrar que na conversa a menina dava em cima dele, mandava nudes, Neymar se aproveita do machismo na sociedade. Ele deu o passe para o Tribunal Popular revirar a conversa e acabar com a reputação na moça.

O fato que chamou mais atenção foi que a moça manteve uma conversa com o Neymar mesmo nos dias após ter afirmado que o estupro ocorreu. É importante salientar que não é incomum que vítimas de estupro mantenham contato com seus estupradores após o ato. Inclusive, por anos. Muitas percebem que foram estupradas após muito tempo. Outras, ainda que se percebam vítimas de algum tipo de violência, tentam a todo tempo se convencer de que isso não ocorreu. É um mecanismo de defesa. Não é possível afirmar categoricamente qual comportamento esperado que uma vítima deve ter após ser estuprada. Principalmente, não é possível dizer que por uma vítima ter tido tal comportamento, isso significa que o crime não ocorreu. Quem acompanha o dia a dia dos processos judiciais sabe que a realidade material nos presenteia com diversos cenários de mulheres que sofreram esse tipo de violência e adotaram comportamentos muito diferentes.

Lembro de um caso que tive contato, a título de exemplo, de uma mulher que havia sido estuprada por um cara em um bar. Era um encontro casual e já muito tarde, em um boteco num local ermo. O que aconteceu foi que após o estupro a vítima aceitou uma carona do cara para casa e um dos argumentos principais do processo girava em torno desse fato: se ela realmente foi estuprada, como pôde aceitar uma carona do estuprador? Ela, inclusive, se colocava em risco de sofrer outro estupro. Ela não deveria ter corrido e ido diretamente para a polícia? Apesar de muitas vezes ilógico ou contra-intuitivo, é a reação que essa vítima de estupro teve.

Portanto, estaríamos sendo precipitados se dissermos, no caso do Neymar, que a vítima não foi estuprada porque mandou mensagem para o jogador logo depois do estupro ou nos dias seguintes. Isso não necessariamente prova que o crime não ocorreu. O que ocorreu com a divulgação das fotos, isso sim, foi outro crime.

Muitos acreditam que Neymar foi burro ou mal assessorado juridicamente ao compartilhar as fotos e ser acusado de outro crime. Muito pelo contrário, a defesa de Neymar foi estrategicamente planejada. Ele tem todos os recursos para se defender dessa nova acusação, conta com o apoio popular que taxa a garota de piranha e o coloca como verdadeira vítima da história e ainda conta com o costume de nunca ser responsabilizado por seus atos. Pessoas com seu nível de prestígio e grana dificilmente são.

No dia seguinte, o desenrolar da história continuou. O Instagram removeu o vídeo publicado pelo Neymar e a imprensa divulgou que “um laudo médico de exames realizados no dia 21 de maio pela mulher que acusa Neymar de estupro aponta hematomas, problemas gástricos, perda de peso e sintomas de stress pós-traumático”.  Mesmo diante dessas novas informações, que corroboram o depoimento inicial da vítima, a defesa de que Neymar está sendo vítima de uma interesseira mal intencionada segue, segundo o script já dado pelo pai do jogador ao Datena.

É difícil saber como será o desfecho dessa história. É possível até mesmo que o Neymar seja, de fato, inocente. É possível que ele seja culpado, mas ainda assim absolvido. É extremamente improvável que ele seja condenado.  Apesar do que muitos podem dizer de feministas, ninguém está aqui para defender acusações falsas de estupro se realmente foi isso que ocorreu. Mas nós sabemos que a preocupação com acusações falsas é extremamente seletiva. Ninguém se preocupa se uma pessoa foi falsamente acusada de tráfico, por exemplo. Nos noticiários, dependendo da cor do sujeito, ele já é classificado como traficante e nunca “suposto traficante”. A preocupação com uma acusação falsa, nos casos de estupro, tem muito menos a ver com a defesa de uma garantia penal e muito mais a ver com machismo.

Por sabermos que a palavra da vítima é a priori desacreditada, a defendemos primeiramente. Sabemos que existem muito mais mulheres que não denunciam seus estupradores do que denunciam falsamente. Sabemos que vítimas de estupro são julgadas e revitimizadas quando denunciam criminalmente seus estupradores. Sabemos que a sociedade, o judiciário e a mídia não estarão ao seu lado, por isso nós estamos.

 

[1] VIGARELLO, Georges. A History of Rape: sexual violence in France from the 16th to the 20th Century. Cambridge: Polity Press, 2001, p. 17.

[2] BECKER, Howard S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 24.

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